NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: BENEDITA LOPES
CRÔNICA PARA ALICERÇAR POESIA
Folha em branco, busquei a caneta, não a encontrei, única possibilidade de escrita, o batom cor de boca marrom avermelhado, sutil em lábios negros, na folha em branco um tatuar de palavras cor de sangue, mais forte que isso, é concretizar a escrita a semelhança de um tatuador. Estou pronta para a brincadeira, tenho um minidicionário na bolsa. Celular? Careço mais de comer. Saio meio hora mais cedo de casa para conseguir assento no ônibus, são 04h45min, manhã quente, o dia acordando. O céu alaranjado, o sol a quase revelar segredos, mostra seu sorriso, largo e quente. Vou queimar, promete ele. Sigo lendo seus mistérios, dou salvas ao dia. Dentro do ônibus, sento e logo em seguida pego a sacola da passageira que não consegue se sentar. Dei sorte, a sacola serve de apoio, papel sobre ela, desenho letras por letras, arrisco uma rima aqui, um ritmo ali, palavras por palavras se formam. Os sentidos pulsam dissonantes ora calmaria ora agitação e cravo o primeiro verso. Em transe percorro a escrita, uma lágrima molha a página, disfarço, mas os passageiros estão mergulhados em suas singularidades. Sorrio e retruco a palavra ousada, sem me dar conta uma estrofe se fez. Deixo os olhos transitarem pela quadra, experimento se há verdades nelas, seus sentidos me causam taquicardia, Súbito pensamento de querer destruir o escrito, Não! As palavras me enfrentam, exigem respeito, mostram os porquês, e eu sou ninguém diante desses vocábulos que destroem o eu singular e me definem plural. Palavras são vozes de vidas habilidosas em sua atemporalidade, clareiam passado, faz mistério do presente e iluminam o futuro de forma que não o vemos de verdade. Susto! O batom quebra, na hora do ponto final. Guardo as folhas com cautela. Desperto para a lida. Sou poeta? Não sei, versejei um início com cores de sangue, para alicerçar poesia.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza se apresente;
BENDITA LOPES: Eu, Benedita Aparecida Lopes sou filha de Belchior dos Reis Lopes e de Josefina Maria de Jesus Lopes de ancestralidade indígena e negra, sou graduada em letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Fundação Santo André. Especialista em Língua Portuguesa pelo COGEAE/PUC/São Paulo e Laureada Mestra Griô Pela Universidade Federal do ABC-UFABC. Como escritora negra habito diversos quilombo literários, a convite de Catita, Claudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira e Samira :Calais co-fundadoras, integro o Coletivo de Escritoras Negras FLORES DE BAOBÁ cujo livro DAS RAÌZES À COLHEITA foi lançado em 2023- Selo Dandara – Editora Feminas, com o amadrinhamento de Lia Vieria. E publiquei meu livro solo PORÇÕES PARA SE ACORDAR PRESENTE em 2021- Selo Dandara – Editora Feminas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo ancestral em seus escritos?
BENDITA LOPES: É uma resposta matematicamente biológica, isto significa que sou soma da ancestralidade materna (23 cromossomos) mais a ancestralidade paterna (23 cromossomos) que resulto no meu DNA, na minha formação genética, logo na minha essência ou se preferir alma. Assim, tudo que escrevo se concretiza através de minha ancestralidade, seja na escrita afetiva, seja na escrita científica está inserida a ancestralidade negra e indígena.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: quem você escreve?
BENDITA LOPES: Escrevo para quem quer a vida para além do óbvio, para leitores inquietos indignados com a realidade vivida e para conquistar pessoas distraídas que ainda não entenderam a força prazerosa e transformadora do ato de ler.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
BENDITA LOPES: A minha literatura é um ato político, portanto um antídoto para todo e qualquer crime contra a humanidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como são ou foram as suas relações com seus pais?
BENDITA LOPES: Mamãe era filha de um diretor de escola, meu bisavô materno, aquele que” caçou minha bisavó a laço”. Ele não permitia que mulher estudasse, por isso minha mãe tinha uma sede de saber escrever e ler, por isso dava extrema importância ao estudo. Meu pai estudou até ao que hoje denominamos 7º ano do Fundamental II. Ele tinha uma brincadeira de nos sabatinar com poemas, um deles era o “Meus oitos Anos” de Casemiro de Abreu, e ou com parlenda ou trava-línguas, amava contar causo de fantasmas, ler livros de Bang Bang, comprar enciclopédias e livros do Ciclo do Livro, este último uma espécie de TAG, mas vendidos de porta em porta. E a música que entrava com serestas que nos acordava nas madrugadas. Entre tantas músicas que nos marcaram, destaco “Meus Tempos de Criança” de Ataulfo Alves.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
BENDITA LOPES: Nasci negra de pai e mãe, a compreensão dessa circunstância se afirmava nos ensinamentos, ou máximas como “temos que ser dez vezes melhores que um branco para sermos aceitos”. E com o passar dos anos os enfrentamentos sociais, que me davam alma branca, me obrigava ao alisamento do cabelo para permanecer em determinado emprego.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Oralitura – definida por Leda Martins que usa o termo para designar as histórias e os saberes ancestrais passados não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas culturais. Esse conceito se faz em seus escritos?
BENDITA LOPES: Sim e muito. Festas, hoje consideras folclóricas como, Congada, Cavalhada, Folia de Reis, os causos mineiros contados à luz de lampião, as histórias de vó Clarinda à beira do fogão a lenha abriram minha imaginação e por se instalarem na memória viram tantas histórias para ninar gente sensível.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
BENDITA LOPES: Sou leitora cúmplice do escritor sendo o narrador, os personagens e se não for assim, a leitura foi malfeita ou desinteressante para o momento. Leitura superficial não existe, mesmo quando leio de forma geral sou investigadora, destaco texto, versos, leio permitindo as palavras de fazerem meus resumos, meus poemas, meus enredos e resultarem na minha coescrita, a isto chamo de diálogo entre mim e o autor.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi é para você a publicação do livro?
BENDITA LOPES: Parafraseando um amigo, foi e é um “rabo de arraia”, uma resiliência derrotar não e ser sim para mim, em uma sociedade racista e inimiga do saber.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
BENDITA LOPES: Escrevo para sonhar, para me libertar de amarras impostas pelas forças externas, por resistência política, para exercitar a minha plenitude.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são suas negras influências?
BENDITA LOPES: A minha ancestralidade, toda arte e cultura que me forja/lapida gente, citarei dos nomes femininos, porque elas como escritoras nos convocaram a escrever, são elas, Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, com as quais referendo a todos artistas das palavras negras que me provocaram Benedita Lopes Escritora. (Um jeito de tentar ser justa e não ocupar páginas e páginas desta Notas de Escurecimento por Escrito).
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi seu primeiro e decisivo ato literário?
BENDITA LOPES: Foi a minha primeira publicação como escritora nos Cadernos Negros – Volume 37 – Quilombhoje Literatura.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo “escrevivência”. O termo aponta para uma dupla dimensão: é vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que se enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
BENDITA LOPES: Sim, porque como sujeito da minha história escrevo o que vivo e vivencio, mesmo que o processo de escrita seja ficcional e metafórico, esse é verossímil. A arte de escrever tem uma linha tênue entre o sonho e a realidade e isso possibilita escrever verdades mentirosas ou mentiras verdadeiras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
BENDITA LOPES: Eu escrevo com ela, por elas, isso porque minha ancestralidade se inscreveu em mim.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é para você ser uma escritora negra no Brasil?
BENDITA LOPES: É ser revolucionária e lutar contras as mentiras que o mundo machista e racista impõe, algo como nadar contra a maré até alcançar a firmeza do texto, ou livro não apenas publicado, e também lido.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
BENDITA LOPES: Inspiração porque existe o olhas sensível para s coisas da vida, para o mundo, e transpiração poque é traduzir em palavras o que este olhar sensível ao mundo me provocou, como quem pede do leitor compreensão e cumplicidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
BENDITA LOPES: Para a escrita de afeto a poesia que é o mundo, para a escrita revolução a versão ao crime que destrói o mundo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
BENDITA LOPES: Eu tento escrever todos os dias, deixo fluir as palavras. Ora sai um poema ora uma prosa. Tem dia que ler é mais produtivo, no outro uma caminhada, ouvir uma música, fazer uma oficina literária e tem dias que um poeta inspirador me “futuca” em sonho, as vezes como sonho sonhado, outra com sonhos acordados.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou um eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
BENDITA LOPES: Eu tenho um eu lírico feminino maternal que sempre aparece em meus textos, esse eu lírico são mães afetuosas, como também, indignadas, questionadoras, é como se esse “eu’ em sua maternagem quisesse a partir a vida plena.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavra em seus escritos?
BENDITA LOPES: Tem um eu mesma menina brincante ou um eu que reverbera o que me alegra, dói e sangra apenas feminino ora carente ora amante e sempre menina mulher negra.
MIGALHAS
Do seu desenredo de morte
seu lixo é ceia,
nele as suas migalhas,
Oferendas
luxo desperdiçado,
Alicerceiam meus planos.
cadernos,
lápis
e livros,
Sustentáculos de sonhos,
de seu lixo recolho
a sábia
poética de liberdade,
E
Versifico-me vida
à contradição do seu interesse.
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