NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Ingrid Morandian
BIOGRAFIA APAGADA
se não agora, quando?
perdi me dentro da localização do mundo
os ponteiros congelaram meus poucos passos antagônicos
um desassossego queima os minutos
que restavam no prato
novamente bateram à porta
não se deram conta de que estou do
outro lado do roseiral
quilômetros à frente
o mundo de cada um não cabe na realidade de outros mundos
tenho minha própria ficção com paredes caiadas de branco
e carrego muitos pincéis para falar de Kalinka,
saber situar no mundo reverso
formular o existencialismo
redesenhar a própria morte como prova
de total inexistência
no mundo finjo aberturas em colunatas e abadias
finda funda espera
quem sabe o recomeço
silêncio, porque a palavra falada dói
e constitui endereço incerto
emudeci tempestades de anos
o silêncio é a delicadeza de uma foto esquecida na penteadeira
de tu não esqueci, Kalinka
preciso me revirar para poder encontrar te inteira
ainda não sou completo, na nossa cama
os lençóis pouco emaranhados sobejam um prazer recolhido
perdi me
piso forte segurando a bússola
dei o recuo, não atravesso a fronteira
aporte dentro de um escaravelho
há cem anos percorro claustros e decorei todos os semblantes que estão no museu
não encontro a saída que leva ao outro lado do roseiral
a voz interior perpétua solene numa linguagem balbuciante
e triste
teu olhar é tão constante e filtra todas as manhãs as poeiras do dia anterior
uma paisagem de longe, do outro lado
alguém perguntou de qual substância é composta
os homens normais
não sei, estes vivem do outro lado do roseiral
se não há mar, não há mapa para ser encontrado
não há biografia a ser escrita
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
INGRID MORANDIAN: Ingrid Morandian, paulista, poeta e escritora. É autora do livro Se você me amasse, teria fechado os olhos, pela Editora Patuá, 2019. Além de ter participado de várias antologias e livros de coletâneas (como Senhoras Obscenas), revistas eletrônicas: Mallarmargens, Diversos Afins, Liberoamérica, Germina entre outras
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
INGRID MORANDIAN: Leitora curiosa e abrangente. Apaixonada por livros desde criança, influenciada pelos irmãos mais velhos que compravam livros pelo Círculo do Livro, cresci rodeada pela literatura. Na adolescência frequentava a biblioteca do bairro.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
INGRID MORANDIAN: A publicação de um livro é um processo de gestação. Desde os primeiros versos a finalização do livro, você está intimamente ligado a tessitura e a palavra que exige cuidado, desvelo. Durante o processo em alguns momentos a escrita foi dolorosa, escrever exige muito do autor. Não é fácil. A materialização das palavras no objeto livro foi uma grande realização.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
INGRID MORANDIAN: Escrevo para compreender o mundo, o estranhamento que atravessa a humanidade. Perscrutar o silêncio em suas variadas formas, quando se aloja no quarto no final da tarde, na noite mais escura de inverno ou nas reentrâncias dos olhares.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
INGRID MORANDIAN: Mário de Andrade, Machado de Assis e Lima Barreto
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
INGRID MORANDIAN: Sim. Os temas universais como a solidão e a morte atravessam a minha literatura como questionamentos. Atualmente tenho buscado na Filosofia o entendimento a essas questões.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
INGRID MORANDIAN: Carrego as lendas e referências dos orixás para a vivência diária e dessa experiência transporto para o papel. O olhar a vida, mas não necessariamente escrevo sobre a minha ancestralidade. Minha referência mais direta, íntima e mais forte é meu pai.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
INGRID MORANDIAN: Transpiração, a escrita nos exige o trabalho, a tessitura e composição das palavras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
INGRID MORANDIAN: O silêncio, a morte, o estranhamento, o outro.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
INGRID MORANDIAN: Não tenho disciplina. Não escrevo todos os dias, mas sempre que posso dedico momentos para a escritura.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
INGRID MORANDIAN: Não almejo o leitor ideal, escrevo para o mundo, alguns podem se identificar com os meus escritos e a partir daí cria-se a ressonância, a conexão: poeta-leitor
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
INGRID MORANDIAN: Tenho essa percepção desde pequena, por volta dos 11 anos quando minha tia trançou meu cabelo crespo e ao me olhar no espelho, percebi que me diferenciava das outras crianças da escola de cabelo liso.
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