NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritor de hoje: Manto Costa
Festa de Preto-Velho
Eu calculo as horas, somo o tempo, conto a vida. Do alto dos meus 80 anos nada mais me surpreende, mas tudo me diverte. Sou um preto-velho, e por isso sou considerado por muitos um sábio. Mas não é bem assim. A verdade é que eu sei muito pouco. Aprendi no curto tempo de escola e com a vida duas ou três coisas, e olhe lá.
Hoje tem festa no Terreiro de Caridade João de Aruanda, bem aqui em frente. É 13 de maio, Dia de Preto-Velho. Há um desfile de carros e gente bacana na frente do templo. A casa tem fachada de mármore e uma pequena cachoeira artificial no jardim, mas houve um tempo em que nem pintura o terreiro tinha. Agora, o nome João de Aruanda brilha numa moldura em neon, dá gosto de ver. O povo não para de chegar. Uma mulher alta, ruiva, trajando um longo vestido branco, carrega nas mãos uma braçada de rosas da mesma cor. Ela aguarda diante da Cachoeira de Oxum o marido que ainda procura uma vaga para o carro espaçoso. Parece que está com dificuldades. Ao mesmo tempo, chega uma van que descarrega oito pessoas de uma só vez para a festa, que deverá varar a madrugada. Nós, os preto-velhos, merecemos.
O cheiro do defumador domina as imediações e assim fi cará por um bom tempo, sendo substituído mais tarde pela fumaça espessa de mais de uma dezena de cachimbos acesos. Eu gosto da cantoria e canto alto os pontos mais bonitos: “Oxalá, meu pai, tem pena de nós, tem dó, a volta do mundo é grande, teu poder é ainda maior”. Vejo mais aflição do que esperança nos olhos de toda aquela gente bem-vestida. O que esse velho poderia fazer por elas?
É curioso ver aquelas madames e aqueles senhores de paletó comerem a feijoada. Assim como no tempo da senzala, não tem garfo, não tem colher, não tem faca. Come-se com as mãos. Eles não sabem fazer aquele bolinho com a farinha. A maioria prefere nem comer. Esse tipo de coisa me diverte. Muitas daquelas pessoas eu já conheço de vista, imagino os seus embaraços. Aperto os olhos por causa da miopia — a visão do velho está cansada — e revejo o vereador de tantas eleições. Está ali em busca de mais um mandato.
As saias branquinhas das vovós incorporadas rodopiam no terreiro ao ritmo dos atabaques. Os vovôs também dançam, enquanto o povo bate palmas cadenciadas. É uma festa bonita. Eu me divirto em assistir à jovem russinha dançando como uma velhinha. Dizem que é neta de general. Ano passado doou alta soma de dinheiro para a casa. O zimbo foi suficiente para que fosse concluída a obra na sede campestre, na Costa Verde. Cê sabe, alguns trabalhos têm que ser arriados na mata…
É bonito ver toda aquela gente que chega e que sai se ajoelhar em frente à imagem do preto-velho, logo na entrada do terreiro, ao lado da Cachoeira de Oxum. Como eu fico na direção da porta, cá de fora olho pra ele e ele lá de dentro olha pra mim cá fora. Não precisamos dizer nada. Na verdade, um é a cara do outro, parece até um espelho: carapinha branca, roupa puída, pés descalços, o pito numa das mãos. Somos filhos da África.
Todos se benzem diante do meu irmão; pedem licença para entrar e para sair. Alguns jogam até dinheiro. E ele me olha nos olhos, imóvel, me fitando o tempo todo. Eu sei que se ele pudesse se levantaria dali e me daria o coité com café que acabaram de colocar à sua frente. Mas, que importa? A noite está fria, mas eu ainda tenho folhas de jornal para me cobrir. A marquise é grande, me protege do sereno. Por isso, não saio desse canto por nada. A rua é minha casa. Vou dormir ao som de atabaques e de uma boa cantoria. Afinal, é Dia de Preto-Velho. Tudo me diverte.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
MANTO COSTA: Manto Costa, muito prazer. Manto Costa é autor do livro de contos “Circo de Pulgas”, premiado pela Biblioteca Nacional e pelo Ministério da Cultura, no Governo Dilma’
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
MANTO COSTA: Se ela está em mim logo está nos meus personagens. Eles falam por mim.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser um escritor negro no Brasil?
MANTO COSTA: Ao contrário do meu trabalho como jornalista – que tem uma linha editorial a seguir -, como escritor eu posso mostrar o mundo real em que vivo. Há diversos brasis, mas o Brasil não seria nada se não fosse o povo preto.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
MANTO COSTA: Ambos
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
MANTO COSTA: A vida cotidiana e suas agruras sociais.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
MANTO COSTA: A intuição
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
MANTO COSTA: Posso escrever tanto na primeira como na terceira pessoa, mas João de Aruanda é um personagem que surge sem avisar.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
MANTO COSTA: O céu, a água, o mar, o vento e o fogo
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitor?
MANTO COSTA: É uma espécie de radar.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
MANTO COSTA: O primeiro a gente nunca esquece, no meu caso “Meu caro Júlio – A face oculta de Julinho da Adelaide“. Mas, no geral, vejo um livro publicado como um filho.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
MANTO COSTA: É uma forma de respirar.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
MANTO COSTA: Lima Barreto, João do Rio, João Antônio, Machado de Assis, Carolina de Jesus, Edimilson de Almeida, Lande Onawalê, Conceição Evaristo, Nei Lopes, etc
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
MANTO COSTA: Escrever um roteiro para curta-metragem.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
MANTO COSTA: Sim
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo Ancestral em seus escritos?
MANTO COSTA: Uma luta sem fim
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
MANTO COSTA: Lembrando Conceição, ‘escrevivências’
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
MANTO COSTA: Para todos
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
MANTO COSTA: Sei que não vou mudar o mundo, mas faço a minha parte. Se eu levar duas dúzias dos meus leitores à reflexão estarei convicto que tudo valeu a pena.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra ou negro?
MANTO COSTA: Primeiro quando me olhei no espelho, mas sobretudo nas ruas.
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