NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO – Série de questões enviadas para pretas escritoras negras e negros escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Viviane Moraes
TURBULÊNCIAS
O voo DL6956 decolou de São Paulo numa manhã tranquila e límpida, com destino a Washington DC. Luiza Prates, comandante da Delta Aircraft, anunciou o tempo de viagem, condições meteorológicas e escala em Recife; o copiloto João Caetano pilotou até o avião entrar no piloto automático. Em seguida, ele saiu da cabine para ir ao banheiro.
Passados dez minutos, as cortinas da cabine são abertas pelas mãos suadas e trêmulas do copiloto, os olhos arregalados. O suor de João imprimiu a forma da mão direita na cortina. Luiza notou algo errado, contudo, antes de agir, ambos foram rendidos:
– Calados! Sequestro! Atualizem o curso do voo em direção ao Central Park. Agora eu sou o comandante!
O sequestrador parecia um pai de família, de aproximadamente 25 anos, alto, magro e de cabelos lisos. A voz traduzia um caráter resoluto.
– Entendi – respondeu Luiza contendo o medo –, mas seu pedido é impossível, precisamos abastecer em Recife.
Luiza, sentada na cadeira de comando, olhava os instrumentos e buscava uma saída.
– Por que este sequestro? – perguntou Luíza em voz alta.
– Calada! É surda? – gritou o sequestrador.
– Deixe que eu fale, Luiza – disse João. – Você tem que nos dar uma explicação!
O sequestrador, com a pistola empunhada, girou o braço para a esquerda, tomou impulso no sentido contrário e atingiu o copiloto com o cabo da arma na nuca, deixando-o desacordado na cabine. Luiza viu suas lágrimas caírem mas, sem se intimidar, gritou:
– Eu tenho o direito de saber o motivo pelo qual posso morrer! Fale tudo!
– Mês passado, fui deportado dos Estados Unidos.
Enquanto ele falava, pálpebras e mãos trêmulas mostravam alguém sem nada a perder. Deu longas pausas e as pupilas contraídas mostravam a raiva expressa na voz ríspida. Após vinte minutos em transe continuou:
– Minha família, esposa, filhos e eu, buscaríamos o sonho americano. Carla, de dois, e Pedro, de seis anos, permanecem em solo norte-americano, com localização desconhecida. Aquele governo ministra sedativos e analgésicos às crianças imigrantes, para controlá-las.
O sequestrador olhava fixamente para Luiza, girando o tambor da arma de fogo para tentar se concentrar no presente, sem pensar em sua tragédia pessoal. Por fim, concluiu:
– Parte de uma política xenófoba do novo presidente. Minha esposa desesperou-se e se suicidou ao chegar no Brasil. Lançarei este avião no meio do Central Park: meu manifesto contra essa política imigratória.
Luiza precisaria reunir as técnicas que conhecia para acabar com a ameaça aérea.
– De onde você é? – questionou a comandante.
– Não sei de onde sou, isso não importa, provavelmente a vadia que me gerou não teve o menor cuidado e me jogou às freiras carmelitas, fui adotado por uma família em Olinda, meu único objetivo de vida era ter uma família feliz e apagar a cicatriz do abandono do passado.
– Carmelitas?
Ela tentou segurar, porém os olhos marejaram. Aquele rapaz tinha idade para ser o seu primeiro filho. Luiza nasceu em Olinda no carnaval de 1973. Não conheceu o pai.
Escolhi não morrer naquele dia violento… O salvador da minha alma foi Pedro, que perdi para um acidente de carro, Carlos tinha apenas nove anos. Como cheguei aqui? Avião sequestrado! Como desarmar esse infeliz? Depois do assassinato da minha inocência, aprendi a me defender, mas isso pouco importa. Os olhos negros deste… me lembram a noite da violação, quando prometi sequer pensar no abuso. Tremores internos. Minha tentativa de ser cidadã do mundo, nada disso conseguiu apagar a sombra em mim. O pavor, o vazio, a dor, o atentado. Quando terá nascido esse passageiro? Terrorista filho da…! Olhos negros e profundos. Ao menos posso me alienar lembrando dos passeios no Parque del Retiro, em Madri, sentada, crocheteando no final da tarde. Dali a pouco estaria morta. Ponto final. Meu maior conflito era encontrar um novo amor, quem me aceitasse como sou: luz e sombra. Tenho um segredo que só contei para Pedro: meu filho entregue às carmelitas. Encontrarei minha mãe? Desesperança é tristeza. Ele me impacta. Por quê? Minha mãe morreu com Alzheimer, pôde diluir a dureza da vida. Não terei tal direito. Fim. Acabou. Pra sempre. Ela me ensinou a fazer crochê. Guardo na bolsa a primeira agulha nº 6,5, de plástico, empregada nos caminhos de mesa nordestinos. A essência da minha mãe vem sempre comigo, meu amuleto. Não encontrei o amor de novo, como poderia me abrir novamente? Fui invadida. Ele tem idade para ser o fruto do estupro, dado em adoção. Será o destino pregando peças? Ainda que seja meu filho entregue após o parto, agora, salvarei as vidas dos passageiros, tripulantes, a minha e a dos inocentes em terra.
Luiza olhou o sequestrador no reflexo do vidro do painel, abriu sua bolsa, retirou a agulha de crochê, levantou-se girando e, em um único golpe, enfiou a agulha na jugular do sequestrador e puxou. E, assim, conseguiu fiar o destino de todos os que estavam a bordo.
Pousaram em Recife. As autoridades retiraram o corpo e periciaram o avião. Ela não conseguiria seguir viagem naquele dia, havia vencido a morte mais uma vez. Agradeceu pela vida e telefonou para Carlos:
– Filho, eu te amo. Manda um beijo pro meu neto. Já estou voltando.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
VIVIANE MORAES: Viviane Moraes, sou escritora, desenhista, criadora de histórias, bem humorada, advogada, professora, filha, gosto muito de crianças e cachorros…
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
VIVIANE MORAES: Desde criança eu já sabia que era negra, essa questão sempre era trabalhada em casa. Meus pais sempre me incentivaram a estudar, a construir minha carreira, pois me mostraram que por ser negra eu tinha que ser a melhor, e isso me acompanhou a vida toda. Há pouco tempo passei a ter coragem de falar dessas questões raciais inclusive no meio jurídico.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
VIVIANE MORAES: Minha ancestralidade está nos meus textos pois sempre trago a questão da família, da amizade e dos grupos que nos ajudam a ser pessoas. Além do meu livro “O mistério do sono profundo” em que as crianças saem em busca de uma resposta para salvar suas famílias; escrevi um texto “Turbulências” que trata de um sequestro de avião cujo desfecho está ligado a uma questão familiar. Nós somos pessoas, e existimos em relação aos outros, não estamos isolados neste mundo. Isso para mim é muito forte.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
VIVIANE MORAES: Meus pais são pessoas muito cuidadosas e acolhedoras, meus pais são pessoas que me deram e dão apoio até hoje, não somente apoio material, mas o que hoje se tem raro: o apoio emocional. Ambos são pessoas com quem eu posso contar para rir ou chorar junto, nas situações desafiadoras e apenas para estar junto. Acho que isso me marcou muito, por isso penso na família como um lugar de proteção. Gostaria que as pessoas pudessem ter isso também nas suas vivências.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é, na sua opinião, a função social da sua literatura?
VIVIANE MORAES: A função social da literatura é de construção do imaginário, fazer com que as pessoas tenham capacidade de sonhar e ter esperança.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
VIVIANE MORAES: Gosto de ler histórias de fantasia, mas gosto de textos autobiográficos também. Um livro que gostei bastante foi “O que eu falo quando eu falo de corrida” do Haruki Murakami, ele fala do percurso do escritor, que serve para várias profissões. Quando eu leio, mergulho naquela história e meu coração vai ficando cada vez mais pleno, mais humano. O livro permite que eu veja as limitações das pessoas, incluindo eu mesma. Muitas vezes a angústia surge da falta de conhecimento do outro… Pessoas erram, então vejo que a literatura é um grande laboratório de experiência, sem que tenhamos que errar diretamente. O que não impede o erro, só os torna diferentes.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influências?
VIVIANE MORAES: Machado de Assis principalmente, depois com esse reconhecimento de escritoras negras comecei a ler Conceição Evaristo, Bell Hooks entre outras mulheres negras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
VIVIANE MORAES: Eu me tornei escritora depois de me reconhecer uma pessoa criativa, antes disso eu já tinha dançado, criado obras de artes plásticas, designs utilitários, mas a literatura era algo que eu tinha vontade mas não tinha me autorizado, sabe?
VIVIANE MORAES: Meu primeiro texto de ficção publicado foi o conto “Turbulências”, nele eu me reconheci escritora. Me abracei nessa arte que antes era tão elitista.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
VIVIANE MORAES: Ser escritora negra no Brasil significa que eu tenho que acreditar primeiro no meu talento, na qualidade do meu trabalho, independentemente de saber se vou vender ou não todas as cópias do livro que decidi editar independentemente. Aliás, em todas as empreitadas de uma mulher negra no Brasil essa é a primeira: acreditar em mim mesma.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que e quem você escreve?
VIVIANE MORAES: Escrevo para pessoas que tenham imaginação, que se autorizem mergulhar pra dentro de si mesmas, não tenho uma faixa etária específica, mas converso com a criança interior, que brinca, que espera que sonha.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
VIVIANE MORAES: Ambos: as ideias não estão prontas, então o texto literário vai depender de espera, daquele dormir das páginas escritas na gaveta. Textos que serão reescritos e muitas vezes deixados de lado, por um tempo indefinido.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
VIVIANE MORAES: Eu gosto de escrever à mão em um caderno de criação, depois do caderno eu passo os textos para o computador em um editor de texto. Imprimo os textos, coloco em uma pasta e vou relendo de tempos em tempos para editar novamente com papel e caneta. Enfim, faço um exercício de escrita e reescrita. Quando entendo que o texto está bom, passo para alguns amigos que irão me dar as primeiras impressões sobre o texto. Às vezes eu edito outras não. É realmente um jeito de ir trabalhando as emoções com as palavras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em seus escritos?
VIVIANE MORAES: Normalmente eu coloco o mesmo narrador em terceira pessoa, que não participa da história, mas não me vejo presa a essa forma de narrativa.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
VIVIANE MORAES: Falo sobre família, amizade, superação e relacionamentos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação de um livro?
VIVIANE MORAES: É emocionante sempre, pois me sinto no rol dos grandes criadores, como se eu tivesse uma pontinha da história da literatura em mim.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavra em seus escritos?
VIVIANE MORAES: Entendo que a imagem é parte da escrita, hoje temos uma construção de imaginário que permite a troca ou transição entre linguagens artísticas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Aponte, por gentileza, cinco figuras negras brasileiras importantes?
VIVIANE MORAES: Dra. Eunice Prudente (jurista e abolicionista); Sueli Carneiro, Conceição Evaristo; Lélia Gonzales, Elza Soares. Faço aqui um protesto, pois há muito mais que cinco figuras negras importantes. Agradeço pela oportunidade de falar neste espaço!
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Redes de Viviane Moraes
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