NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: VIVI DE PAULA
O SAMURAI NEGRO
Quando acordei de manhã, vi seus olhos pela primeira vez. Eles eram profundos, castanhos e penetrantes. Um samurai negro. No quarto escuro, todos os dias, ele treinava incessantemente. Uma das pessoas mais altas que já vi. Seus músculos saltavam por debaixo da túnica preta que vestia. Usava um colar de pedras redondas amarelas, uma calça pantalona bem longa e um cinto vermelho, que marcava sua silhueta alongada e forte.
Não falava muito, meditava por horas a finco e em qualquer lugar. Seu prato preferido era uma bacia cheia de frutas, legumes e folhas. Contido, também abria um sorriso em muitas dessas vezes. Cumprimentava todas as pessoas que estavam no Hostel. Na Jamaica, pela primeira vez vi um Samurai Negro.
O que me intrigava eram as horas em que ele passava em um quarto totalmente escuro, treinando por horas movimentos corporais, movendo suas mãos a usar diversas técnicas. Certa noite, quando questionado de onde era, respondeu que era do presente e do agora. Curiosamente, ele me fez a mesma pergunta e eu respondi: — “Eu sou do Universo”. Sua expressão mudou completamente e uma gargalhada leve irrompeu do grupo.
Em alguns instantes, lá estava ele, meditando na frente de todos, sem medo dos julgamentos. Uma pessoa que causava medo, estranheza e desconforto nas pessoas. No fundo, queriam ser como ele. Vi no semblante delas que puderam também notar que o Samurai Negro tinha algo de especial: um mistério ou um segredo.
Noutra noite dessas, descobri que havia partido. Tinha ido em direção à Montanha Azul, levando consigo apenas uma mochila em que carregava somente o suficiente. Sem todo aquele peso na consciência, leve como uma pluma negra, ia rumo a novos destinos e paisagens. Não tive tempo de me despedir do Samurai, ainda que eu não acredite em despedidas. Nossa existência tem sempre o dom para reencontros.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
VIVI DE PAULA: Sou Viviane de Paula, escritora, atriz, educadora, e-learning designer e pesquisadora em Literatura Negra. Também fundadora da Texto e Contextos, uma editora tecnológica em seis idiomas. De nome artístico, Vivi de Paula, nômade digital e modelo performática, publiquei recentemente o livro de poemas “Flores Roxas”. Em 2024, fui eleita a Pérola Negra de Campinas pela minha contribuição cultural para a região. Graduei-me em Letras na PUC-Campinas e fiz especialização na área textual na Unicamp e Mackenzie. Morei por dois anos em Nova Iorque e viajei por mais de 20 países pesquisando Literatura Negra. Sou um pouco nômade como toda libriana, escrevivente e transiente, multiartista diariamente e polêmica nas horas vagas. Nasci temperada com dendê e wasabi preto.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
VIVI DE PAULA: Eu sempre me entendi como uma mulher negra. Cresci em uma família preta afrocentrada apaixonada por música (samba, blues, hip hop, pagode e MPB). Logo, nomes como Tim Maia, Isley Brothers, Alcione, The Gap Band, Racionais MCs, Djavan e Negra Li tocavam quase todos os dias em casa. Então, a partir das raízes do samba e do rap, tive contato muito cedo com temáticas sobre as mazelas sociais no Brasil e os racismo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
VIVI DE PAULA: Eu fui adotada aos 3 anos de idade, nunca tive uma boa relação com meu pai biológico, apesar de conhecê-lo e visitá-lo algumas vezes. Ele tentou uma aproximação quando eu completaria 21 anos, mas não tive tempo de atender aquela chamada telefônica. Ele faleceu algum tempo depois, devido ao vício em drogas e doenças mentais. Minha relação com minha mãe nem sempre foi boa, mas hoje é maravilhosa. Ela ficou um tempo em coma, devido a uma doença grave, apenas com 2% de chance de sobreviver. Foi ela que me incentivou a aprender línguas e trazia diversos livros da escola pública em que trabalhava para eu ler.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
VIVI DE PAULA: Minha ancestralidade transpassa minha vida de diversas formas. Na escrita, minha ancestralidade pode ser percebida através dos personagens, das temáticas, dos cenários e também das mensagens que desejo transmitir. Escrevo usando a escrevivência como espelho. E minha vivência desde sempre esteve conectada com minha ancestralidade. Isso faz parte de minha identidade, pois é como eu me inscrevo no mundo enquanto mulher afro-indígena brasileira.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é, na sua opinião, a função social da sua literatura?
VIVI DE PAULA: A função social da literatura é criar universos possíveis de serem vividos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
VIVI DE PAULA: É um grito, muitas vezes, abafado. É uma canção muito doce, mas que sangra em alguns dias. É uma dádiva que se confunde com um fardo. É um desejo muito denso e profundo, que não sei de onde vem. Alguns chamam tudo isso de “propósito”.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
VIVI DE PAULA: A transpiração é o que inspira. Acredito que ambas andam juntas. Transpirar também me inspira.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
VIVI DE PAULA: Não tenho um processo pronto. Noturna, diurna, no avião, na praia, nas vielas, no ônibus, no quarto escuro. A escrita é muito natural e simples, por isso não a coloco em processos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em seus escritos?
VIVI DE PAULA: Não. Em cada texto, trago personagens distintos, visto que algumas vezes escrevo em primeira pessoa; noutras, em terceira. Falo sobre o que vivi, o que aprendi vendo, sobre o que me contam ou não, sobre fatos que invento.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
VIVI DE PAULA: Os sentidos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
VIVI DE PAULA: Autoestima, racismo, espiritualidade, ancestralidade, amor próprio, raiva, medo, ansiedade, morte, insônia, resiliência, periferias, amores afrocentrados, violência doméstica e de gênero, hermetismo, sincronicidades, orixás, Egito Antigo, quilombos, críticas sociais, denúncias. Não me prendo a um tema apenas, gosto de escrever sobre temas que importam para mim e para as pessoas ao meu redor.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
VIVI DE PAULA: Eu sou uma devoradora de livros. Gosto de ler sobre temas diversos, mas principalmente sobre espiritualidade, ancestralidade, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação de um livro?
VIVI DE PAULA: É assustador saber que minha cor chega antes do meu talento e intelectualidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influências?
São inúmeras: Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Paulina Chiziane, Maya Angelou, Taís Araújo, Negra Li, Harriet Tubman, Luiz Gama, Basquiat, Mohamed Ali, Sílvio Almeida, Djamila Ribeiro, Malcolm X, Audre Lorde, Angela Davis, Nelson Mandela, Bob Marley, Djavan, Luedji Luna e Liniker. Com certeza, esqueci-me de citar alguns nomes.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
VIVI DE PAULA: Foi quando inscrevi o meu conto “A menina que acreditava em heróis” em um concurso literário na PUC-Campinas. O conto foi inspirado na minha relação com meu pai e teve grande notoriedade na Universidade. A partir desse conto, houve uma mudança de ciclos em minha vida de forma permanente.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
VIVI DE PAULA: Eu escrevo para todos os seres sobreviventes.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
VIVI DE PAULA: Escrevo para me lembrar, para me manter saudável, para me expressar, para ajudar os outros, para me inscrever no mundo enquanto mulher afro-indígena. Escrevo para sentir.
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