NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Gilda Portella
MALDIÇÃO
Gilda Portella
Boca que beija a bandeira de São Benedito
É a mesma que humilha e maltrata os empregados
Boca que beija o anel do arcebispo
É a mesma que difama a filha da mãe solteira
Boca que faz o sinal da cruz e recebe a hóstia consagrada
É a mesma que propaga a intolerância religiosa
Boca que recita salmos e versículos
É a mesma que destila racismo
Boca que clama “sangue de Jesus tem poder”
Cala-se diante da “bala perdida” que tomba negros
Boca que brada “Amém” e “Glória ao Senhor”
Aquieta-se nos altos índices de feminicídio.
Maldita boca
Boca mastiga e come as negras carnes
Boca tritura os melhores anos da negra carne
Boca beija e lambe negra carne jovem
Boca suga energias salutares das negras carnes
Boca degusta o melhor carpaccio negro
Boca delicia nos quentes úmidos lábios negros
Maldita engrenagem
Boca que jurou reduzir sofrimentos e salvar vidas
Nega atendimentos ambulatoriais pela tez
Boca que jurou garantir o estado de direito
Faz oratória pela redução penal
Da oca boca sai o que está
Entranhado na alma
Maldição
Exclusão
Racialização
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente
GILDA PORTELLA: Gilda Portella, sacerdotisa de umbanda, multiartista, historiadora, discente de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea na linha de pesquisa Epistemes Contemporânea da Universidade Federal do Mato Grosso, natural de Barra do Garças-MT, infância e adolescência em Torixoréu-MT, vive em Cuiabá-MT onde também compõe o Comite de Cultura. Em 2022 recebeu menção honrosa na categoria novos autores do Prêmio Maria Firmina de Literatura e foi selecionada pelo Flup/RJ com Cartas para Esperança. Em 2021 foi selecionada no I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura/MT. Participa das antologias: “Um nordeste pra cada um”, “As Manas na Estrada”, “Baobá de Concreto’’, “Contos Marginais: Histórias na Umbanda”, “Mulheres das Ervas”, “Lendas Africanas”, “Coletânea Parto Normal”, “Mulherismo das Letras na Lua”.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
GILDA PORTELLA: Sou uma mulher com 54 anos, mãe de santo, sempre li com finalidades escolares e recreativas, e comecei a escrever na pandemia covid-19 por orientação de um preto-velho. Conheci a UQ num curso do Livres Livros com Rozzi Brasil, onde minha vida abriu para possibilidades nunca imaginadas. No universo das leituras e das escritas de mulheres, fui acolhida, ouvida e fortalecida; lendo mulheres negras me descobri escritora negra também. Comecei a trilhar esse caminho depois dos 50 anos, tem me feito mais leve e feliz.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
GILDA PORTELLA: Gosto muitíssimo da experiência das antologias vendo nessa construção coletiva uma potência que fura as bolhas, as regras impostas pelo mercado editorial. Isto facilita a muitas escritoras que como eu vivem na periferia geográfica ou financeira. Nas coletâneas tive a felicidade de ver meu texto lido e circulando em outras regiões por custo acessível e ao lado de outros estilos narrativos. Em 2023 lancei meu primeiro livro solo “(Des)nudas sangue e gozo”, no padrão do financiamento coletivo, apoiada pela família e amigos. Então comentei com meu companheiro que o valor da venda não pagaria vinte por cento da conta de água do mês. Para mim é impossível viver de literatura. Estranhamente recebo mais incentivos, convites e apoio de escritores de outros estados que do Mato Grosso; isso dificulta viver de literatura.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
GILDA PORTELLA: Para me encontrar. Para pôr ordem no caos de minhas lembranças, nos meus sentimentos, na vida. Para curar feridas pessoais e coletivas. Escrever é como sutura-las, aplaca a dor e o sangramento. Há momentos de calmaria ao escrever me permitindo construir pontes com outras mulheres, suas histórias, com as questões étnico raciais e religiosas, me sinto util. É um grito, uma dor, mas é também esperança!!
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
GILDA PORTELLA: Vó Maria José da Silva Matos fundadora do Centro Espirita Pai Jeremias em Cuiabá/MT, mãe de santo que acolhe, orienta há mais de sessenta anos junto aos pretos-velhos e orixás da Umbanda; sua generosidade, sabedoria e amor me inspiram sempre, é minha referência da vida. Vó Francisca Correia, quilombola, parteira e benzedeira na Chapada dos Guimarães-MT viveu 106 anos, deixando-me a marca da simplicidade e da alegria. Ela via com os olhos d’alma. Enedina Domingas, com o apelido de Bina, mulher negra, natural do Coxipó do Ouro – primeira área mineradora da região- empregada doméstica na casa duma tia; Bina foi minha primeira inspiração de autossuficiência. Valorosas negras floresceram em Mato Grosso, mas estas, ausentes da história oficial, mudaram a história da minha vida.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
GILDA PORTELLA: Acho que foi a poesia que submeti ao concurso da Revista Itan, mas ler Conceição Evaristo, Lélia Gonzales e Gloria Anzaldúa foram atos literários marcantes, definitivos em minha vida. Mas há outros: os causos de Julião, as histórias do pé de garrafa, do neguinho d’agua no rio Araguaia, as ladainhas cantadas, os Catiras, a Folia de Reis, as Lapinhas de dona Rolinha e dona Bechó, o Congo de Vila Bela, as festas de São João e São Lázaro da minha família em Torixoréu; para mim em tudo isso, há atos literários, pois são manifestações artísticas sentidas, rezadas, entoadas, sapateadas, exuberantes em cores, sabores e ritmos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
GILDA PORTELLA: Imagino as letras como cores vivas que bordam, pintam, cantam, dançam etc; em outros instantes o texto desconstrói ou cria imagens, cheiros e sabores; para mim o texto conecta escritor-leitor-universo numa via de mão dupla, assim essas escrevivências nos fazem vibrar, motivar, fomos afetadas e afetamos. Sim, escrever tem essa dupla ou tripla dimensão psicossocial, liga mundo concreto-imaterial, reconecta aspectos e espectros internos-externos; há múltiplas relações da escrita com a vivência do autor, do leitor, que reflete, ilumina lutas, sonhos, amores, desamores, sua relação consigo mesmo, com outros e sua cosmovisão, eu acrescentaria também a dimensão espiritual.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo ancestral em seus escritos.
GILDA PORTELLA: Ancestralidade que carrego comigo, estará presente todo o tempo; vejo-os, sinto-os e saúdo-as nas aguas (mar, riacho, pântano, chuva, cachoeira, etc.) nas pedreiras, matas, raios, trovões, nos animais, nas frutas, bebidas, cores, vida e morte. Imagino que com a mesma naturalidade fluirá na minha escrita, creio que muitos não percebem ou acreditam na ancestralidade assim viva, fluindo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
GILDA PORTELLA: Lendo essa pergunta vem a minha mente duas frases que falam um pouco disso: “Meus passos vêm de longe”, “Nunca ando só”. A literatura afro-brasileira tem resistido e reinventada graça ao esforço de inúmeros escritores negros que nos antecederam. Seus registros poéticos além de marcar a presença nas produções literárias e artísticas foram e são símbolos de lutas, de resiliências, dos cruzos e da criatividade singular que só o povo preto conhece. Primeiro é preciso ter essa consciência que muitos outros abriram e mantiveram esse caminho aberto para que hoje possamos lê-los. Lembremo-nos que escrevemos graças a eles.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
GILDA PORTELLA: Quando digo que sou mulher negra há estranhamento e muitos questionamentos; ainda tenho que lutar para reafirmar que sou negra e que minha escrita traz vivências minhas e de outras mulheres, e carrega uma estética e poética negra, apesar da minha tez ser mais clara. Escrever sobre temáticas étnico raciais, terreiro, orixás e umbanda sempre vem acompanhado de resistência e enfrentamento; antes eu achava que era pessoal, hoje sou capaz de relacionar a falta de oportunidade está ligada à temática que abordo. Lembro o dito popular: “Só se joga pedra em mangueira carregadas” sigo procurando as antologias e concursos literários ligados à temática afrobrasileira e continuo produzindo a partir do meu universo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
GILDA PORTELLA: Certeza que há mais transpiração. Mas, sentar a bunda na cadeira, num escritório, ter tempo para escrever, ler, reescrever ainda é um privilégio para algumas escritoras, muitas de nós precisam trabalhar em outros ofícios para garantir o sustento da família, pagar aluguel, agua e luz. Nem por isso os escritos que ainda não puderem ir para o papel, ou não foram publicados, são menos importantes dos que já estão impressos nas grandes editoras e distribuídos nas livrarias e escolas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
GILDA PORTELLA: Vida como ela é. Tento aborda questões étnico raciais, umbandistas, manifestações culturais enfim o que me constitui. O que me afeta.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
GILDA PORTELLA: Vou falar da última experiência, fui convidada a escrever sobre Abdias do Nascimento; um grande desafio, nunca tive a pretensão de escrever sobre grandes personagens negros assim como Abdias do Nascimento ou Maria Carolina de Jesus, prefiro falar das pessoas comuns, singulares como Vó Chica, Vó Goya, Tio Lato e Jacolino. Desafio aceito, fui pesquisar sobre Ábias, depois de muito ler, debrucei-me sobre seus escritos, fiquei dias lendo tudo aquilo. Daí tentei aproximar aquelas informações das minhas vivencias umbandistas, onde há intuições, desdobramentos, visões, orientações etc. Sinto que minhas práticas de mãe de santo afloram e deixam seus indícios nos meus textos. Para mim os contos sobre Abdias ficaram parecendo conversa de preto velho. Esse material está no prelo, já será lançado em breve. Aguardem: ENTRE O ORUN E O AYÊ com diversas e diversos escritores negros brasileiros.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
GILDA PORTELLA: Para mim primeiro. Depois as escritas não me pertencem, quando vai para papel está livre para alçar voos. Acho que é isso, daí deixa de estar em mim. As escrituras lembram as tatuagens no corpo; tem as pretas, as coloridas, as que doem, as que nos alegram, as que queimam durante o processo de construção, umas cicatrizam rapidamente, outras tornam-se escaras e ficam borradas; algumas se tornam moldes, há as que se depreendem de nós, tornam invisíveis e outras que permanecem em nós. Evidenciando que ainda é preciso escrever sobre aquele assunto.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
GILDA PORTELLA: A literatura de modo geral é ferramenta de promoção, de justiça social, reflete nossa arte, nossa identidade cultural, garante acesso à cidadania, à democracia, é expressão de liberdade, de afeto e de sensibilização. São pluriversas as funções da literatura, há múltiplas funções cognitivas, psicossociais, políticas e de letramento racial. Literatura é fundamental para tornar o ser humano mais amoroso, empático e respeitoso em suas diferenças religiosas, raciais ou sexuais.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
GILDA PORTELLA: Pintando telas sobre os orixás e mulheres negras, às quais nomeie a todas elas de Tereza de Benguela numa referência à líder do Quilombo Quariterê. Devido as telas fui me aproximando dos coletivos negros, o primeiro foi o Coletivo Negro Universitário-UFMT, com as atividades sociais do Centro Espírita passamos a desenvolver trabalhos no Quilombo Mata Cavalo, passei pela Casa das Pretas, e concomitante cheguei no Coletivo de Mulheres Negras chamado Herdeiras do Quariterê e lá estou ainda hoje atuante. Essa descoberta foi uma construção coletiva junto as manifestações culturais/artísticas e ao movimento negro.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Oralitura – definido por Leda Martins que usa o termo para designar as histórias e os saberes ancestrais passados não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas culturais. Esse conceito se faz palavras em seus escritos?
GILDA PORTELLA: Acho que quando escrevo um conto sobre as parteiras e trago as práticas, os saberes dos chás usados do território quilombola; quando ambiento uma personagem principal sendo mulher negra, que canta, dança o chorado em Vila Bela da Santíssima Trindade; quando trago as avós com seus conselhos, bolos, doces e licores na festa de São Benedito; esses elementos culturais, religiosos, fazeres e saberes ancestrais são valorizados, são focalizados enquanto elementos fundantes na construção da minha narrativa.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
GILDA PORTELLA: Basicamente não. Careço de formação em literatura. Escrevo o que sinto, o que vejo, desato os nós que ficaram. Evito teorizar sobre as lágrimas, os fios que ali estão sendo alinhados, tecidos. Apenas escrevo. É o que dou conta. Mas sou aberta para aprender mais.
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Contato de Gilda Portella: E-mail gildaportella.art@gmail
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