Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: MARLI AGUIAR
(Re)integração
O Corpo inteiro
É exigido pela escrita
do poema
que o rasga e o desintegra
No entanto
é a costura
de cada verbo
é o cingir
de cada palavra-texto
Que faz todo esforço
de (re)integrar
a poeta e a poesia.
CONVERSA
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
MARLI AGUIAR: Marli de Fátima Aguiar, mulher preta retinta. Filha de Luzia Augusta e José Aguiar, mineira, mas mora em São Paulo mais de 30 anos. Graduada em Letras/Português e Espanhol pela UNIFESP. Escritora, oficineira. Autora dos livros: Tecendo Memórias e Histórias (Contos) – 2016, produção independente e artesanal. (Des) Aguas e Afluentes (Poesia e Prosa) 2021-Ed. Feminas- Selo Dandaras. Organizadora do livro: Das Mãos que pariram, reciclam e transformam– Ed.Feminas 2023. Participante de outras antologias, nacional e internacional incluindo a serie Cadernos Negros.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
MARLI AGUIAR: Desde que nasci, sabia que era nega, pois meus pais sempre nos orientavam, meus irmãos e eu sobre o que enfrentaremos por causa da cor de nossa pele. Quando criança na escola, sabia que era preta, pois era tratada diferente, pelos professores e pelos coleguinhas, mas tudo isso na época não era dado o devido nome: racismo. E foi também na escola que aprendi a me defender as violências e agressões. Normalmente eu brigava muito de rolar agarrada aos cabelos de quem me chamavam por nomes racistas e por causa das tranças que minha mãe fazia no meu cabelo. Foi uma fase difícil, mas eu revidava no “braço”. Meus pais me ensinaram a me defender, e que não era para eu chegar chorando em casa quando algo acontecesse, então eu entendi. Depois na adolescência, foi a fase mais difícil, morando na cidade, pois firam muitas mudanças, físicas e emocionais, meu corpo mudou, era obesa e sofria piadas no ambiente de trabalho, na rua e nenhum menino queria namorar comigo. Passei a adolescência brigando comigo mesma. E só depois aos meus 17 anos, entrando em um movimento de jovens trabalhadores-JOC (Juventude Operaria Católica) podia compartilhar minhas dores, mas também não eram relacionados aso racismo. Eu acreditava na democracia racial e que todos no Brasil vivíamos em harmonia, até meus 30 anos, que aí sim, descobri que que eu sofria desde pequena era racismo e descobri com outras mulheres negras, que já estavam em movimento. Sabia que era negra, sabia que aqueles tratamentos me incomodavam, os preterimentos, a solidão, mas não sabia nomeá-los. Será que foi aí que me redescobri negra? Tenho pensado sobre isso.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
MARLI AGUIAR: Meus pais hoje são ancestrais. Meu pai, em 2005 julho, minha mão em 2014, janeiro. Foi difícil a perda delas, pois sempre foram minhas referencias de força, coragem e de educação. Me lembro de quando criança, a noite sentados no “rabo” de fogão de lenha, meu pai chegava da roça, cansado e todas as noites após a janta nos contavam uma história e na sua maioria das vezes rem sobre terror, assombração…E acho que esta referência me inspirou muito para fantasiar, sonhar e criar personagens. Já com minha mãe, nossa relação era muito próxima, éramos filha e irmã, mas em perder o papel que cada uma tinha. Esta relação próxima é devida que ela mesma fez meu parto, sozinha em casa, ela era parteira. Voltou do trabalho da roça e preparou tudo nos mínimos detalhes, e depois deitou na cama par esperar eu nascer. Acho importante dizer isso. E eu fui a primeira a morar em dois países Ecuador e Alemanha, e ela dizia que se eu havia nascido sozinha, também poderia sair e morara em outros lugares, poria voar. Falo isso, porque sempre refiro a ela em minhas escritas, meus contos, poemas. Pois foi com ela que eu aprendi a ler, a escrever vendo ela ler a bíblia velha, ou pedaços de jornais que meu pai trazia embrulhado no sabão. Eu a via no escuro lendo, apertando os olhos com a luz fraca da lamparina. Então, eu também pegava o pedaço de jornal de cabeça para baixo e lia, inventava histórias com aquela confusão de figuras-letras. E ela também me incentivou a fazer faculdade e a continuar meus estudos, eu e meus irmãos. Então, minha relação com meus pais era muito boa, apesar de eu morar longe, sempre estávamos perto e assim também com meus irmãos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade estão nos seus escritos?
MARLI AGUIAR: A Ancestralidade é centro em minha construção literária. Como mencionei acima, sobre minha mãe, meu pai também tem lugar nos meus escritos, meus avós, principalmente as Bisavós que não conheci então tento trazê-los minhas narrativas e dizer que eles são importantes. Meus poemas, meus contos, minhas pinturas estão repletos de minhas ancestralidades e agora o romance que estou construindo. Tudo que vou escrever, antes eu peço licença para falar em nome deles, para contar ou criar uma narrativa e pergunto se estou no caminho certo. As vezes pergunto: como meu pai contaria essa história. Dependendo do texto que vou criar ou a personagem, é como se soprassem no meu ouvido, ou as vezes eu sonho e entendo a mensagem. Não é aquele negócio magico de sentar e baixar uma luz magica sobre a cabeça, mas se trata de uma conexão com a história, com o ambiente, com as histórias de outros e com as histórias de meus antepassados que nunca foram contadas. Minhas personagens tem nomes e sobrenomes, o que acho bem importante, porque no passado eles não tiveram, tem lugar, são protagonistas e vivem intensamente. Para mim, não há como existir presente se não há um passado. E o passado do povo preto e indígena nossas ancestralidades, a natureza, as arvores, os pássaros, os rios, as flores tudo estará presente, pois são passado-presente-futuro, como dizia Antônio Bispo, tudo é um ciclo e não existe fim, é sempre: começo, meio começo. E a ancestralidade vive em mim vive em nós.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é, na sua opinião, a função social da sua literatura?
MARLI AGUIAR: A literatura acredito que sempre cumpriu um papel social, que além de mostrar a realidade do momento social de quem escreve, mostra também o político, cultural…no caso de literatura negro brasileira ela tem cumprido um papel importante social quando as autoras e autores surgem das periferias, ou muito que começam a ganhar espaços, prêmios literários. Estes além de gostar do movimento palavra escrita traz também a contextualização, do momento e de várias vozes que por muito tempo foram silenciadas. A escrita negro brasileira sempre traz em suas linhas e entre linha as vozes ancestrais, as dores e as curas coletivas através de poemas, contos romances e traz também denuncias de uma sociedade baseada no racismo e na desigualdade de gênero. Embora quiséssemos que nossa escrita fosse apenas de relaxar, mas não nos furtamos ao papel importante de como disse a mestra Conceição Evaristo “Não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário”.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
MARLI AGUIAR: É ser ousada, como sempre dizia nossa querida amiga, escritora Tula Pilar. Sim é ter ousadia para enfrentar uma sociedade racista e excludente que não nos veem nos mesmo lugares que os cânones. Até pouco tempo não me via neste lugar, até tinha medo de dizer. Mas me descobri escritora com outras escritoras negras e foi necessária muita coragem para me assumir como tal. É também um processo difícil e desafiante, porém, é algo que transcende.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
MARLI AGUIAR: Penso que seriam os dois, (risos)… (risos). Porque pode haver inspiração, mas mesmo assim ela precisa ser trabalhada, lapidada. E o fato de que ser escritora negra no Brasil, muitas de nós não vivemos só da escrita, ou só das artes. No meu caso, trabalho sou Agente de Defesa Ambiental, presto assessoria as cooperativas de reciclagem e quando chego em casa, a noite cansada, ainda quero escrever, pensar alguma coisa que me marcou durante o dia e que possa inspirar minha escrita. As catadores me inspiram a escrever e criar a partir de suas histórias. O que observo nas conversas alheias nos transportes ou fina me inspiram, mas depois tenho que suar, respirar, transpirar, lapidar e dar sentido ao que observei, ao que ouvi, ao que senti. É preciso priorizar, concentrar, perseverar e transpirar para criar um bom texto.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
MARLI AGUIAR: Leio muito, penso muito, e escrevo muito. Minha imaginação é fértil, como dizem alguns amiges. Em quase tudo eu vejo uma história possível de ser contada….(riso), mas nem sempre é possível compô-las. Sempre ando com um caderninho de anotações, um livro e uma bolsinha de lápis pra que quando vem as ideias eu anoto, seja a imagem ou o texto e depois transformo em texto. Uso também muito recurso de meus sonhos, que muitas vezes são bons e acho que daria uma história, as vezes no meio da noite acordo com uma palavra ou uma frase, acordo e anoto. As vezes estas anotações levam anos guardado e quando retomo, me lembro do acontecido e vou lá nas anotações. Portanto, tenho muito e muitos cadernos. Nem tudo que eu escrevo acho que esteja bom para publicar. Sempre leio e mudo o que escrevo, até a exaustão, mas depois de publicado, não leio. Quando estou na produção de um livro, minha rotina é: acordo 2 horas mais cedo, antes de sair para o trabalho, faço um café, sento e escrevo. Primeiros faço as anotações no caderno, e depois que aquela ideia esgota, será outro momento de levar para o computador. Dedico tempo para pensar, ler outras referencias daquilo que estou escrevendo, dou um tempo para maturar a ideias e depois volto ao texto. Depois, ao termino da escrita, eu imprimo, e vem o processo de ler, reler e rescrever e muitas modificações no texto, as vezes sai quase outro texto. Então, o texto pede pra parar. Sendo assim, leio para amigos, para ver se eles/elas gostam. Se for um poema leio, apresento e espero as reações, peço sugestões, no que poderia melhorar etc. Sempre tenho umas três pessoas amigas que leem meus textos e me ajudam nas criticas e sugestões.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em seus escritos?
MARLI AGUIAR: Acho que tenho vários, porém os mais comuns para a poesia uso o “eu lírico”, pois traz muitas subjetividades, mas não é sobre mim como autora, embora haja uma aproximação. Nos contos e/ou crônicas sempre tem um narrador que vai traçando os caminhos por onde as personagens passam. Nas crônicas uso recurso de narrador algumas vezes é em primeira. É um narrador e ao mesmo tempo personagem que conta e participa da história, ele não apenas relata a história como também a vivencia, participa e tem todos os sentimentos e emoções propostas nela.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
MARLI AGUIAR: Os sonhos para mim são elementos que se faz palavras em meus escritos, a vezes uma palavra de uma música, a natureza como a terra, o vento, o fogo a água. São elementos fortes e que me inspiram na escrita. Gosto de ver a dança do fogo em sua vermelho alaranjado, aquilo me amedronta, mas também atrai e se transforma em palavras. Água, está sempre em meus escritos, tenho um livro (Des)Águas e Afluentes, que são poemas nesta dimensão liquidam, profunda, corporal que a gente toca, mas não pode segurá-la. Outro aspecto que se faz palavras, é a própria ancestralidade, que alimenta e irriga, e depois me leva a escrita das palavras e nascem as histórias daquelas que não tiveram voz, e seus sussurros se fazem palavras em minhas escritas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
MARLI AGUIAR: Nossa! Eu trabalho com uma variedade de tema, porém os quais são sempre recorrentes em minha escrita são: memórias, negritudes, ancestralidade, sobre a mulher negra, erotismo, diáspora, feminismo, memorias de infância, . Estes três temas sempre vão perpassar minha escrita.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
MARLI AGUIAR: Acredito que seja uma boa leitora, eu leio mais que escrevo. Sempre carrego um livro comigo, por onde ando, e leio muito no transporte púbico. Gosto de ler mais de um livro ao mesmo tempo, tipo, uma ficção e não ficção. Gosto de textos teóricos, pensamentos críticos sobre temas da atualidade. Minha preferência de leitura está mais romance, contos e crônicas, gosto de pensar na continuidade das histórias. E minha leitura depois que descobri a autoria negra tem sido minhas prioridades de leitura, porque até pouco tempo o que eu tinha acesso era autores brancos e cânones. Hoje faço a opção consciente de leitura negra brasileiras e indígena, mas também pela literatura africana, afro-americana, latino-americana, caribenha e literatura gosto de ler e descobris o que estão escrevendo no momento e muitas vezes estas escritas dialogam.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação de um livro?
MARLI AGUIAR: É sempre uma experiencia única! E cada livro é um livro. O livro é um conjunto de fazeres, da capa a contracapa. Eu não sou mãe, mas acho que é a mesma sensação de ter um filho. Você ´prepara para o nascimento, cuida, tem carinho, ajuda a crescer, a amadurecer e depois, solta pelo mundo. Sou apegada a meus textos e me preparo muito antes de solta-los. O meu primeiro livro: Tecendo Memória e Histórias, foi muito especial, pois, ele foi uma publicação artesanal e independente, e também foram contos que retratam as histórias e memorias de minha família. No inicio tive medo do que meus irmãos iriam achar, depois deixei ir, e a recepção deles foi incrível e emocionante. O segundo livro: (Des)Águas e Afluentes-2021, também foi especial, um livro de poesia e poesia com erotismos e o fluir das águas. Este foi pela Editora Feminas, e ilustrado pela Juliana Germano., neste último, o título foi o mais difícil, estava no final do livro e nada do título vir, sabia que era algo com água em movimento, mas, demorou vir. Depois veio o livro: Das mãos que partiram, reciclam e transformam não é autoral, mas é organizado por mim e outras integrantes do Coletivo Carolinas e Firminas-cada dia nasce uma, que são histórias de 16 mulheres 15 catadoras de materiais recicláveis e 1 indígena da etnia Pankararu em contexto urbano- apoiado pelo Edital casa Sueli Carneiro-2023. Este também foi um processo indescritível ao ver estas mulheres escreverem suas próprias histórias e depois torna-las em livro. Publicar um livro é sempre emocionante, apesar de muito trabalhoso também, exige dedicação, foco, escolha das palavras certas, pois, você escreve, revisa, reescreve, revisa, busca as imagens que condiz com os textos. Tudo isso para dizer que é uma sensação muito gostosa, prazerosa e de que “eu posso” publicar um livro autoral ou organizar, e uma sensação única na hora do autografo e do retorno do leitor sobre sua escrita.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
MARLI AGUIAR: São muitas, a começar por minha mãe, meu pai, meus avós e tataravós, irmãos mais velhos que abriram caminhos. As catadoras de materiais recicláveis. As escritoras negras como: Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Zaine Lima, Esmeralda Ribeiro, Plinio Camilo, Carlos Assunpção, Sergio Vaz, Nei Lopez, Benedita Lopes, Edwidge Danticat, (Haiti), Paulina, Paulina Chiziane (Moçambique), Noémia de Souza (Moçambique), Lima Barreto, Antônio Bispo, Ailto Krenak, David Kopenawa, Marcia Wayna Kambeba, Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz, Ângela Davis, Achille Mbebmbe, Iara Aparecida, Thaise Santana, Jeniffer Nascimento, Bianca Santana, bell hooks, Neide Almeida,Cidinha da Silva… São tantas e tantos que não caberiam nesta páginas, todes estes quem abriram caminhos para eu escrever e acreditar que sou escritora. E o mais importante é saber, que não ando só.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
MARLI AGUIAR: Foi escrita e publicação do meu primeiro livro, Tecendo Memórias e Histórias, que me desafiou como escritora, me levou a realizar oficinas de escritas para outras mulheres negras e indígenas e que me fez tornar escritora e acreditar que era possível.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
MARLI AGUIAR: Inicialmente escrevo para mim mesma, para aplacar o desejo continuo de criação e inquietação que brota no meu peito. Escrevo coisas que gostaria de ler e as vezes não encontro. Depois de escrever penso: ah, minha amiga iria gostar de ler isso, então escrevo para ela, e depois penso novamente: Ah, se minha amiga gostou outras pessoas irão postar e se encontrar, e assim me convenço de que escrevo para mim para todos e todas que queira ler o que escrevo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
MARLI AGUIAR: Para dar forma e sentido a minha existência neste mundo cão. Porque através da escrita posso dizer o que não se pode dizer. Na escrita, sou eu e o papel e posso usar minha voz para gritar os gritos contidos, as dores soterradas e as alegrias também. Acredito que a escrita é o um dos lugares das vozes silenciadas de ontem e de hoje, para que a geração futura não precise se calar. Na escrita eu posso ter vários sentimentos e expressá-los, posso amar e odiar ao mesmo tempo, sonhar e criar um mundo possível. Por isso escrevo.
CONTATOS DE MARLI AGUIAR
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