NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Gi Matos
O NOME DA MINHA AVÓ
Desde que eu nasci
minha vó dizia
que estava perto de morrer.
Que a diabete estava desregulada
ou que estava ficando cega.
Eu fui crescendo
e crescendo junto foi
a minha ânsia pela morte.
Eu não entendia o motivo
disso acontecer comigo.
Não havia gatilho algum.
Até que um dia eu percebi
que eu levava no meu nome
o nome da minha avó.
E com ele todas suas dores.
Minha vó partiu
quando eu já passava dos trinta anos.
Mas em mim ficou sua memória ancestral.
Suas sombras e suas luzes.
Seus amores e desprazeres.
Sua plenitude.
Eu aprendi com minha vó
a ressignificar
esse desgosto pela vida.
E então desprezar a morte
assim como quem despreza
o que não lhe satisfaz.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
GI MATOS: Sou Gi Matos, escrevo desde a adolescência, mas somente recentemente publiquei alguns escritos na coletânea Cadernos Negros, volume 45. Inclusive me sinto muito honrada por fazer parte desta antologia, que para mim é cânone da nossa literatura afro-brasileira. Sou formada em biblioteconomia e atuo como bibliotecária há mais de dez anos. Também tenho mestrado em Ciência da Informação e doutorado em Letras – Estudos Literários. Sou pesquisadora de literatura afro-brasileira escrita por mulheres, especificamente sobre as suas orixalidades. Também atuo como consultora acadêmica e revisora de textos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
GI MATOS: Minha escrita é para todas pessoas. Entretanto, atualmente tenho escrito mais sobre religiões de matriz africana, então penso que os povos de terreiro são um público-alvo, de forma que eles possam se sentir representados por meio de meus versos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como são ou foram as suas relações com os seus pais?
GI MATOS: Cresci com os pais separados, então tenho poucas lembranças do meu pai. Ele sempre foi muito religioso (evangélico), então me recordo dele sempre lendo a bíblia e tocando no violão os hinos da igreja. Já minha mãe é kardecista.
Minha relação com a cultura veio mais forte por meio do meu padrasto, que está com minha mãe desde que eu tinha uns sete anos. Ele é artista plástico, já teve um sebo na década de 90, então cresci com ele lendo e ouvindo vinis. Ele foi quem mais me incentivou (e incentiva até hoje) que eu escrevesse e também que eu estudasse.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
GI MATOS: Começo essa resposta com a frase de Bianca Santana: “Tenho 30 anos, mas sou negra há dez. Antes, era morena”.
Eu tenho 35 anos, e cresci me reconhecendo como parda, ou “morena”. Meu processo de descoberta como pessoa negra, sendo parda, foi e está sendo marcado por um profundo entendimento (ainda estou aprendendo) sobre a dinâmica da mestiçagem no Brasil. Tenho estudado textos de pesquisadores como Kabengele Munanga, Beatriz Bueno, Carla Akotirene, Sueli Carneiro e Alessandra Devulsky. Cada vez mais percebo que é uma questão muito complexa.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
GI MATOS: No meu doutorado eu trabalhei com texto literário, mas tinha que fazer muita leitura de texto acadêmico, as chamadas “leituras obrigatórias”. Terminei o doutorado no início deste ano e somente agora, livre dessas obrigações acadêmicas, é que voltei a ler mais por prazer. Mesmo assim, com a rotina de trabalho, estudo (ainda faço outra graduação), ser dona de casa, esposa, mãe, tudo junto e misturado, então com tudo isso no momento tenho dado preferência para leituras mais rápidas, como crônicas, contos e poesias. Preciso aguardar um período de férias para abraçar um bom romance! Acredito que essa é a realidade de muitas mães que são multitarefas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
GI MATOS: Minha primeira publicação foi a coletânea Cadernos Negros 45, ao lado de grandes nomes como Cuti, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, entre tantas/os outras/os. Eu me sinto tão honrada que nem cabe em mim. Quando descobri o “Cadernos Negros” (enquanto pesquisadora) e sua importância para a literatura afro-brasileira, jamais imaginava que um dia eu estaria lá!
Agora tenho planos para um livro solo, que luto para que se concretize em breve.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influências?
GI MATOS: Nossa, essa pergunta é muito difícil porque precisa escolher só alguns, né?
GI MATOS: Lembro aqui, para além da escrita, de Nina Simone, Jimi Hendrix, Gilberto Gil, Milton Nascimento, até mesmo Mussum em Os Originais do Samba, Tim Maia, Alcione!
Mas falando de literatura, eu descobri Carolina Maria de Jesus já era adulta. Já estava na faculdade quando me falaram de “Quarto de despejo”, e eu ainda demorei uns anos para ler. Quando li, me questionei porque demorei tanto. Foi ali que se abriram as portas e janelas da literatura negro-brasileira, afro-brasileira pra mim. Me apaixonei tanto, que pesquisei no meu doutorado as escritoras Cidinha da Silva, Ruth Guimarães e Mãe Beata de Yemonjá.
Fiquei tão entusiasmada pela escrita de tantas mulheres, que desenvolvi na escola onde trabalho um projeto chamado “Leia mulheres negras”. E uma vez por mês, lia com as/os estudantes um texto de diversas autoras, entre elas: Conceição Evaristo, Ryane Leão, Mel Duarte, Miriam Alves, Ana Cruz, entre outras.
Há uns anos atrás, fiz uma especialização em docência no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, onde tive a honra de ter como professor orientador o doutor e escritor Leandro Passos. Admiro muito sua escrita e também de sua irmã Luana Passos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
GI MATOS: Meu primeiro e decisivo ato literário aconteceu ainda na adolescência, um período de descoberta e expressão inicial. Embora minha escrita naquele momento fosse crua e repleta de inseguranças, foi ali que plantei as primeiras sementes do que viria a ser meu caminho literário.
Hoje, já adulta, vejo aquele ato como o pontapé que me impulsionou a seguir em frente, mesmo sabendo que minha escrita continua a ser lapidada. Foi o momento em que, ao colocar minhas palavras no papel, compreendi que a escrita seria uma parte de quem eu sou e do que desejo compartilhar com o mundo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
GI MATOS: Especialmente quando escrevo sobre as religiões de matriz africana, penso nas escrevivências ditas por Conceição Evaristo. Em minha escrita, a espiritualidade afro-brasileira emerge como um elo entre passado e presente, e é nesse espaço que as influências da obra de Evaristo se manifestam, guiando-me na construção de narrativas que honram e celebram nossas raízes, nossa ancestralidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
GI MATOS: Sinto-me pertencente a uma grande comunidade e me lembro muito da filosofia ubuntu. Como escritora negra no Brasil, me sinto valorizando a nossa cultura. Escrever, para mim, é tanto um ato pessoal quanto coletivo; é honrar o passado, celebrar o presente e abrir caminhos para o futuro para os próximos, sempre com a consciência de que “eu sou porque nós somos”.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
GI MATOS: Atualmente, uso muito do elemento “orixalidade” em meus escritos, ou seja, escrevo sobre a temática religiões de matriz africana. Mas também já escrevi sobre sentimentos diversos, como amor e saudade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
GI MATOS: Não sei se felizmente ou infelizmente, não tenho um hábito de escrita. Digamos assim, eu não escrevo todas as noites ou em determinado horário. Não é uma rotina de escrita. Para mim a inspiração é como um processo intuitivo, a ideia vem surgindo e se formando e o texto aparece, como que de repente!
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