NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Maria Aparecida
NÓS
Éramos nós
nos trouxeram pra cá
nos tornaram outros
Apagaram nosso nome
Mentiram sobre nossa história
Éramos outros
E nos excluíram
S A N K O F A N E A M O S
Descobrimos…
Éramos fênix
Ressurgimos
Somos nós!
Permita-me uns versos escondidos, retidos, insubmissos
Na verdade, permitindo me expor.
CONVERSA
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
MARIA APARECIDA: Eu sou Maria Aparecida, mulher negra, filha do seu Tomaz e da dona Doraci, a caçula de uma família de 10 filhos. Eu sou casada, tenho dois filhos e sou avó do Davi e do Arthur. Cresci amando livros e desde muito cedo sabia que queria ser professora e fui durante 32 anos, hoje estou aposentada do estado de Santa Catarina. Nasci no interior de Santa Catarina, sempre desejei ser doutora e realizei meu sonho aos 50 anos de idade. Aposentada, fundei com algumas amigas a Associação de Educadories Negres de Santa Catarina, unindo educação e ativismo. Hoje sou avó, ativista, educadora, mediadora de história e me arrisco na escrita de literatura infantil.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
MARIA APARECIDA: A nossa escrita traz as nossas marcas. Hoje sou o que não era ontem, quando desconhecia meu passado e ainda que minha ancestralidade estive presente em minha vida, acredito que o efeito SANKOFA tem contribuído para que me aproxime cada vez mais da minha ancestralidade, na escrita e na vida.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
MARIA APARECIDA: Meu doutorado foi sobre literatura negra. Tenho pensado muito sobre o ser escritora negra no Brasil. O que me constitui como escritora negra, penso que Cuti, define muito bem meu pensamento quando diz “Uma mãe negra, diante do que é ser negro no Brasil, pensa no futuro e seus filhos, ela sabe que o racismo precisa acabar para que eles sejam felizes amanhã, que não corram riscos. Ela sente e sabe de seu próprio passado enquanto negra. Sua dimensão humana traz algo especial quando o caso é a preservação dos seus. As referências históricas estão ali, as culturais e míticas também. É essa totalidade que considero importante, que chamo deste estar negro-no-mundo (CUTI, 2011, p. 55) e eu, em minha tese reflito “A metáfora da mãe, presente na citação, revela a força da escrita negra expressa na vivência, as marcas do passado impregnadas em sua pele, se refletem na escolha consciente dos vocábulos que darão inflexão aos textos literários afro-brasileiros.” (MOREIRA, 2014, p.78)
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
MARIA APARECIDA: As duas. Inspiração seguida de depuração, refinamento, enfim, transpiração.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
MARIA APARECIDA: Não tenho um tema principal, penso na ludicidade e na possibilidade de diálogo com essa pessoa em desconstrução que busco tecer.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
MARIA APARECIDA: “Nós, vovó e os livros” foi meu primeiro livro publicado, o processo se deu através do olhar sobre minha mediação de leitura com meus netos, nas percepções de escrita negra dos meus estudos, na percepção da ausência/presença de literatura negra nas escolas catarinenses. Essa foi a inspiração, depois passou pelo processo de depuração, conversas com o texto e sobre o texto e sobre a ilustração, e nasceu. Devo dizer que fiquei feliz com o resultado. Tenho um segundo livro no forno, em diálogo com essas questões; um terceiro no processo de depuração e alguns poemas que estão presos, não sei se conseguirei libertá-los.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
MARIA APARECIDA: Relação maravilhosa com meus pais e meus/minhas irmãos/irmãs. Somos uma família muito unida. Meus pais sempre me incentivaram muito à leitura. Minha mãe contava histórias pra mim e minhas irmãs. Meu pai comprava livros me incentivando a leitura. Para além da leitura somo uma família unida pelo afeto.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
MARIA APARECIDA: Prefiro falar de uma “escrevivência”, lembrando nossa grande Conceição Evaristo. Penso que a escrita preta tem muito de escrevivência, do eu que fala em mim e que reflete, que reluz nos meus. E esse narrador que busco, deixar transcender e mesmo na razão deixar escapar o sonho que nos impediram de sonhar.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
MARIA APARECIDA: Eu leitor, leio. As leituras surgem as vezes por necessidade, as vezes por curiosidade, as vezes para acarinhar meus netos, enfim, leio.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
MARIA APARECIDA: A publicação do meu livro foi uma surpresa maravilhosa. Na verdade, o livro nasce premiado: enviei para o Edital Prêmio Elisabeth Anderle de Estímulo a Cultura, um prêmio da Fundação Catarinense de Cultura. Fui contemplada pelo edital e foram publicados 500 livros, que foram doados a crianças e bibliotecas de três municípios. Em um segundo momento, retomamos o livro, a editora Cruz e Sousa (editora negra de SC), a ilustradora e eu, depuramos o texto escrito e imagético e fizemos uma edição comercial. Foi um projeto coletivo. As dificuldades maiores estão centradas no mercado editorial e as dificuldades para estarmos presentes nas livrarias. Maior que o desafio de escrita é o desafio de romper a bolha e fazer nossa escrita circular.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
MARIA APARECIDA: Nunca pensei sobre isso. Talvez escreva por considerar que a minha escrita possa ser mais uma possibilidade de diálogo de nós, conosco. Talvez para dizer que o óbvio precisa ser dito. Talvez, talvez…
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
MARIA APARECIDA: São tantas que não caberiam nesse espaço de escrita. Peço licença para não citar, pois talvez quando lesse essa entrevista poderia me sentir frustrada por não ter nomeado alguém.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
MARIA APARECIDA: Descobrir a existência de uma literatura negra potente e revolucionária que me inspira e me impulsiona.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
MARIA APARECIDA: Penso que essa ideia me persegue e eu a persigo constantemente.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo Ancestral em seus escritos?
MARIA APARECIDA: Não me sinto preparada para responder essa pergunta ainda. Minhas escritas têm traços de ancestralidade?
MARIA APARECIDA: Acredito que sim! Mas como me sinto em constante processo desconstrução e meu repertório é ainda um grão de areia, prefiro observar a ancestralidade dos escritos dos que vieram antes de mim.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
MARIA APARECIDA: Amo essa ideia do Cuti pensando o/a leitor/a. A minha preparação enquanto leitor é o de encantamento, de êxtase, de gozo, diante de tanta literatura que me representa.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
MARIA APARECIDA: A minha preparação enquanto caloura na escrita e de escrever para os meus é para os outros e nesse sentido, complemento o pensamento de Cuti, trazendo mais um pouco dele “Por outro lado também, nós estamos possibilitando ao leitor branco a possibilidade do estranhamento, fundamental para a literatura. Quando um leitor branco pega um texto e não se vê como referência do destino do texto, ele passa a enxergar o mundo por outra ótica. Ou seja, o Outro existe, o Outro me vê com seus próprios olhos‘. Acho isso importante. E quando eu falo do branco, eu não estou falando do branco epidérmico, eu estou falando até de um negro que se sente branco, que está arraigado a essa brancura, (Cuti, 2011, p. 67)
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
MARIA APARECIDA: Como disse, sou iniciante nesse processo de escrita. Nesse primeiro momento, tenho o desejo de levar representatividade, para crianças, jovens e adultos negras/os, para que possamos nos ver nos livros, na ciência, na educação, enfim em todos os espaços e construirmos nossa subjetividade de maneira positiva
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
MARIA APARECIDA: Desde muito cedo, sabia ser negra, mas perceber o significado de ser negra em diálogo com o pensamento racista que estrutura a sociedade a partir da Lei nº 10.639. Sempre percebi que ser negra era demonstrar maior competência. Durante minha infância e adolescência não percebia as questões relacionadas à raça. O racismo é pernicioso, mas extremamente manipulador, não nos permite percebê-lo. A percepção acontece através do letramento racial: leitura, muita leitura e espaços de trocas com pares de caminhada. Com o advento da Lei, “sankofanei” olhar o passado para escrever um futuro diferente pra mim e para os meus que se reflete na minha escrita e, principalmente em pequenas ações do dia-a-dia.
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