NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritor de hoje: Ronaldo Fernandes
EU NÃO TENHO CABELO PRA ESSA CASA
Minha irmã Rosalva (Rose, Rosalba) cuidou da minha avó Josefa até os últimos dias. Quando a vó morreu, a minha irmã continuou morando na casa. A casa tinha três cômodos. Eu lembro que eram sete pessoas morando (eu, Rosalva, tio Abraão, David e Amâncio, minha vó e meu avô). Hoje eu me pergunto: como viviam sete pessoas naqueles três cômodos? Viviam! Quando eu tive mais condições financeiras começamos a mudar a casa… E os cabelos da minha irmã. Uma coisa que eu não esqueço é que minha irmã sempre quis ter cabelos grandes, cacheados. Usa tudo que é entrelace para ficar com ele pela cintura. Minha irmã diz que meu cabelo sim é que é bonito. O dela não. Os dela são mais crespos que o meu. Começamos a reforma da casa. Mudava-se a casa, mudava-se o cabelo da minha irmã. A reforma ficou a meu cargo e da minha sobrinha, que a minha irmã sempre introduz informando: ela é advogada formada. Acho que é porque só cinco pessoas da família têm curso superior. Foram anos reformando a casa. Muda o banheiro de lugar. Ela estava de cabelo azul. Coloca gesso no teto. O cabelo mudou pra preto escorrido. Uma prancha de mármore fica linda. Cabelo orgânicos encaracolados. Uma cisterna de dez mil litros para não faltar água. Cabelo Chanel. Jogo de luzes na sala e banheiro. Aplique de cabelo loiro. Esta etapa da reforma terminou. Ainda tem muito por fazer. Surgiu uma alergia no couro cabeludo dela. Fungo? Só o dermatologista dirá. A casa ficou pronta e minha irmã teve que voltar aos cabelos naturais. “É realmente, eu não tenho cabelo pra esta casa…” Disse a minha irmã enquanto retirava o entrelace de cabelo orgânico.
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
RONALDO FERNADES: Sou Ronaldo Fernandes, Bacharel em Administração de Empresas e Pós-Graduado em Direção e Atuação. Em artes tenho atuação como dramaturgo, ator, poeta e diretor teatral. No mundo corporativo ocupo a posição de diretor de operações numa empresa nacional do ramo de tecnologia. Sou natural de Paudalho, cidade da Zona da Mata de Pernambuco. Vim ainda adolescente para Santos (SP) onde aprofundei minhas pesquisas na área de dramaturgia. Sou autor dos Livros “Avoa” e “Amâncio” (Editora Paraquedas). Fundei a Cia Trilha de Teatro e sou um dos componentes do Grupo Tescom de Teatro (coletivos da região da baixada santista).
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
RONALDO FERNANDES: Através, principalmente das minhas memórias, a minha ancestralidade foi ficando mais latente nas minhas escritas a medida que fui tomando conhecimento delas, pois eu fui criado num mundo que negava a minha ancestralidade. Eu fui criado assistindo novelas que eram protagonizados por atores brancos e que em nada remetiam a minha ancestralidade, só depois dos meus 45 anos é que fui sendo influenciado pela geração contemporânea a mim a entender a minha ancestralidade e a partir dai ela começou a se impor, principalmente a partir das minhas memórias e vivências.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser um escritor negro no Brasil?
RONALDO FERNANDES: É uma autoafirmação contínua que posso ser negro e escritor. Ser escritor e negro e ainda por cima nordestino, parece não ter conjugação, mas a gente luta e tenta diariamente conjugar negro+escritor+nordestino.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
RONALDO FERNANDES: Inspiração e depois transpiração. Inspiração é o start, transpiração é o fazer, desfazer, refazer.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
RONALDO FERNANDES: Ainda não consigo identificar os meus principais temas, mas observo que sempre tem algo relacionado com um homem preto, nordestino, gay e suas ansiedades.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
RONALDO FERNANDES: Tenho um processo fragmentado. Escrevo primeiro sobre uma ideia, uma memória, uma imagem, uma frase e depois vou lapidando por meio da reescrita. As vezes a inspiração veio para um algo que a transpiração modifica totalmente. Escrever para mim é sempre um ato de descoberta e surpresas. O texto toma vida e me surpreende, tanto pro bem quanto pro mal.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
RONALDO FERNANDES: Não consigo identificar esse narrador, como a fragmentação é uma das minhas características, não consigo perceber essa unidade de voz.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
RONALDO FERNANDES: Memórias, espaços, paisagens e famílias.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitor?
RONALDO FERNANDES: Um leitor em fragmentos. Leio vários livros ao mesmo tempo e demoro a acaba-los. As vezes os abandonos para retomar quando a vida se impõe.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
RONALDO FERNANDES: Não foi e não é um processo prazeroso, pelo contrário, é desafiador, desequilibrador. Escrever é ótimo, publicar tem muitos desafios e questionamentos: será que serei lido? Será que estou escrevendo algo relevante? Por qual razão resolvi publicar esse livro? Será que é apenas ego? Publicar sempre me coloca num lugar de fragilidade e questionamentos, mas celebro, celebro minha publicação. Evoé ela seja lida.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
RONALDO FERNANDES: Para, de alguma forma, me sentir gente. “Nomear é fazer existir”, então escrevo, talvez, para existir.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
RONALDO FERNANDES: Rachel Quintiliano, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Itamar Vieira Júnior.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
RONALDO FERNANDES: Escrever e dirigir a minha primeira peça de teatro, que foi o “Nó na Garganta” pra o Grupo Tescom de Teatro, mas a mudança de chave, de entendimento do meu lugar foi com a escrita do Benjamin – O Filho da Felicidade para a Cia Trilha de Teatro.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
RONALDO FERNANDES: Acredito que sim, principalmente quando falo que o motor da minha escrita são as minhas memórias e elas são permeadas e alteradas pela vida que tive.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
RONALDO FERNANDES: Não sei responder essa questão, pois penso que cada livro, mesmo tendo o autor um estilo determinado, é escrito pra uma publico diferente. Eu poderia dizer que meu segundo livro “Amâncio”, é escrito para a comunidade LGBTQIAP+, mas quando eu escrevi não tinha esse foco especifico, pois eu queria escrever sobre abusos e por causa da minha memória e das minhas vivências, o personagem acabou sendo um homem, gay, preto e nordestino, pois foi inspirado no meu tio, mas nunca o meu foco foi a comunidade LGBTQIAP+, mas após o livro escrito é notório que ele dialoga com esse público.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
RONALDO FERNANDES: Nos conectar com nosso lugar no mundo, nos ajudar a entender quem somos e permitir ampliar o nosso olhar para encontrar grupos sociais similares a nós. Isso nos proporcionará um chão firme para nos aceitarmos em nossas diferenças.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra ou negro?
RONALDO FERNANDES: Após os 45 anos, no processo de escrita da peça “Benjamin – O Filho da Felicidade”
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
RONALDO FERNANDES: Até os 17 anos eu não tive convivência com meus pais. Meu pai só convivi até os três anos e dele, nunca mais soube. Com minha mãe fui conviver após os 17 anos e penso que nunca, de fato, estabelecemos uma relação mãe-filho.
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