NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO – Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritor de hoje: Júlio Emílio Braz
NA COR DA PELE (trecho)
Parei diante da vitrine e olhei para mim.
Aquele era eu?
Não, não foi surpresa. Conhecia meu rosto. Conhecia aquelas feições. Aquele corpo não me era inteiramente desconhecido. No entanto, algo dentro de mim provocou um leve mal-estar.
Mal-estar?
Não, talvez mal-estar não fosse a palavra mais adequada. A bem da verdade, me faltava a palavra adequada para explicar o que senti naquele instante.
Estava me vendo e me vendo fiquei, criança descobrindo-se a si mesma na primeira vez diante do espelho, aventureiro em terra estranha e escuridão bem profunda, tateando no nada atrás dos cabelos, dos olhos do nariz, de traços fisionômicos conhecidos. Senti como se estivesse me descobrindo diante da vitrine.
Eu era negro.
Um susto?
Pra que ir tão longe, não é mesmo?
Não, não era isso. Me pareceu estranha a constatação e a leve mas perceptível surpresa diante dela.
Nunca, que me lembre, precisei me preocupar com isso. Mesmo no Colégio ninguém jamais tocara no assunto, nem mesmo em casa A gente não falava sobre isso nem quando tio Luís Carlos aparecia com a sua indefectível boina jamaicana. Algo assim como um acordo não escrito entre ele e meus pais. Até minha mãe costumava fugir do assunto, Todos fogem. A pele acentuadamente mais clara do que a dos meus primos e primas ajuda um pouco mais. Agora, aqui, a sós com a implacabilidade da vitrine, recordo-me apenas de uma ou outra ocasião em que alguém notou minha cor. Chamaram-me moreninho. Foi num dos voos de meu pai e deu para notar o constrangimento geral.
A sós com a vitrine, fico pensando. Lembrar é por demais fácil, algo totalmente involuntário. As lembranças simplesmente aparecem. A mãe vivia dizendo que o sapato dele devia brilhar mais do que o dos outros alunos do Colégio e ele fazia questão disso. Os primeiros dias no Colégio, solitários dias sentado ou escondendo-se pelos cantos, espreitado pelos olhos de todos, perseguido pela surpresa desses olhos. O professor de inglês implicando sempre com o seu jeito de falar, apesar de seus esforços e do dez quase rotineiro das provas. A menina na quarta série que recusou a flor que levara para ela e nunca mais sentou-se ao seu lado na sala. Lembrou-se vagamente daquela carteira vazia durante semanas e de como o professor de geografia – com era mesmo o nome dele? colocou uma japonesinha, aliás a única da sala, sentada ao seu lado. Nunca teve um professor sequer moreninho no Colégio. Sempre fora mais às festas da escola ou dos amigos do que àquelas que a família organizava. Nunca teve namoradas no Colégio. Até quisera, mas todas aquelas que amara só quiseram como amigo, um grande amigo. Conhecia apenas alguns dos irmãos de sua mãe. Os avós maternos morreram sem conhecê-lo. Desconhecia os primos do outro lado da família. Recordou-se do olhar desconfiado de um vigilante no banco. Havia um segurança no supermercado que viva em seus calcanhares, espreitando-o, quando ia sozinho fazer compras. “Ele está com a senhora?”, perguntara a balconista de uma loja no shopping quando ele e a mãe entraram para comprar um vestido que ela usaria na sua festa de aniversário – quantos anos fazia? Não se lembrava mais. Fora há tanto tempo. Quando sumiu uma calculadora na turma da sexta série, muitos alunos ficaram olhando, olhando para ele. Os medos que cresciam dentro dele sempre andavam pelas ruas ou por onde quer que fossem ele, seu pai e sua mãe. A maneira como olhavam para sua mãe. Aqueles olhares, aquele silêncio cordial por trás daqueles olhares. O medo daquele enorme homem negro que se debruçou sobre a janela do carro de seu pai e estendeu uma das mãos para pedir alguma coisa. O medo da mãe fechando os vidros do carro sempre que paravam num sinal de trânsito e aqueles meninos negros apareciam querendo vender tudo e qualquer coisa. A menina negra que a mãe trouxe do Maranhão para trabalhar em sua casa e que comia sozinha na cozinha depois de todo mundo.
(…)
Pareço ter vivido duas vidas todo esse tempo. Uma, bem visível, presa fácil de todo um confortável itinerário de felicidades palpáveis e sucesso irresistível, e uma outra, inteiramente subterrânea, acumuladora de tristes recordações esquecidas, imagens dolorosas imediatamente abandonadas, de coisas bem ruins mas inteiramente invisíveis. Vejo em mim duas pessoas. Aquelas recordações não me pertencem. Fazem parte de outra existência. Dividido, vejo uma daquelas pessoas sorrindo para mim. Ela é a minha cara ou em tudo se parece com a cara que eu sempre desejara para mim. A outra, no entanto, prefiro desconhecer. Vejo nela a face obscura de medos muito, muito grandes. Assombrosos.
Que sou?
Pra onde vou?
O que devo fazer?
O que devo ser? (Na cor da pele, p. 49-54)
CONVERSA
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
JÚLIO EMÍLIO BRAZ: Meu nome é Júlio Emílio Braz, tenho 64 anos e há quarenta e três anos sou autor de livros infantis e juvenis. Licenciado em História pela UNIRIO, também sou Técnico em Contabilidade e Graduado em Literatura Infantil e Juvenil pela Cândido Mendes. Atualmente tenho cerca de livros publicados e no currículo premiações como o Prêmio Jabuti de Autor Revelação de 1989, com meu livro de estreia Saguairu (atualmente publicado pela Editora Mostarda); Austrian Children Books Award, na Áustria, e Blaue Brillenschlangue, na Suíça, ambos em 1997, pela tradução para o alemão de meu livro Crianças na Escuridão (FTD), além de figurar na lista White Ravens do IBBY, com meu livro Lendas Negras (FTD).
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Como é você leitor?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Extremamente eclético. Leio tudo e qualquer coisa.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Na verdade ela está longe de poder ser como pronta e acabada, mas antes, perseguida em busca de um refinamento identitário mais consistente sob camadas de influências sedutoras mas que partem de narrativas principalmente eurocêntricas.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo ancestral em seus escritos?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Antes de mais nada, um grande investigador de minha ancestralidade (não por acaso fiz História na universidade), buscando fatos, narrativas, personagens e personalidades para ampliar e aprofundar meu autoconhecimento.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser um escritor negro no Brasil?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Desafiador, pois antes de mais nada tenho que me conscientizar de que vivo e sobrevivo profissionalmente em uma sociedade que não valoriza a leitura no particular e não compreende a arte e a cultura como um ofício e uma necessidade no geral. O ser um autor negro, neste contexto amplamente desfavorável, só é agravado pelo racismo que busca desqualificar o negro como produtor de literatura e conhecimento.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Muito além de ofício e ganha pão, um prazer, um desafio.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Não é possível para mim separar uma coisa da outra. As experiências de minha vida, se não aparecem obrigatoriamente em meus textos (e muitas vezes isso acontece), se fazem norte para o que escrevo.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Transpiração
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Oralitura – definido por Leda Martins que usa o termo para designar as histórias e os saberes ancestrais passados não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas culturais. Esse conceito se faz palavras em seus escritos?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Sendo sincero, eu nunca pensei nessas coisas quando sento para escrever. Eu apenas escrevo e deixo os estudiosos definirem em palavras até mais interessantes que as minhas o que ando escrevendo.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Eu simplesmente adoro contar histórias.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Para qualquer um que queira ou tenha interesse em ler o que escrevo.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Como profissional, movimento-me com facilidade em qualquer gênero, mas pessoalmente sou apaixonado por temáticas sociais.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Lima Barreto em termos de Brasil e Ralph Ellison e Richard Wright, em termos de mundo.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Inquietar, tirar as pessoas de suas respectivas zonas de conforto.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Feito a partir de grande disciplina. Todo dia eu me obrigo a escrever pelo menos seis horas por dia. Sou um grande devorador de livros, revistas e jornais e deles retiro ideias para novos livros. Também tenho o hábito de anotar tudo o que me vem à cabeça se mostra interessante para a construção de narrativas, constituição de personagens e diálogos. Abomino exercício físico, mas sou um entusiasmado “flaneur”, adoro caminhar, zanzar pelas cidades em ônibus, trens, metrô e barcas. Contraditoriamente sou ao mesmo tempo um demófobo e alguém que adora estar no meio de gente, ouvindo e interagindo.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Tomar a decisão de viver de meus direitos autorais ainda no início de carreira nos anos 80.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negro?
JULIO EMÍLIO BRAZ: A grosso modo, no dia que encontrei a minha certidão de nascimento e vi que minha cor era “pardo”. Eu tinha seis para sete anos e não entendi como eu poderia ser definido pela cor do papel com que eu encapava meus livros e cadernos, principalmente por eu não ser da cor daquele papel. A partir dali eu fui procurar a minha cor, o que se constituiu em algo trabalhoso e que só começou para vaer quando entrtei para a faculdade de História.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Curto escrever em primeira pessoa.
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NOTA DE ESCURECIMENTO: O que não foi perguntado porém você gostaria de abordar?
JULIO EMÍLIO BRAZ: Por que falamos tão pouco da literatura infantil e juvenil feita por autores negros no Brasil e no resto do mundo.
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