NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO – Série de questões enviadas para pretas escritoras negras e negros escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Carmen Faustino
FORA DE HORA
Do alto do meu anseio
Meus olhos fitam lá embaixo
Você subindo os montes
E desbravando na língua úmida
As curvas de pele preta
Sua meta é matar a sede
Nascente de pelos crespos
Mina de água quente
Rasteiro
Esfrega negrume em mim
Seus lábios famintos trafegam
As cabaças do rio prazer
Prevendo ser sugado
Escorre pulsando
Das margens da mata fértil
Até o côncavo macio
Sussurros aflitos
De jorrar tesão e viço
Me afoga em orgasmo
Conforta o corpo saciado
Entrega meu delito e prazer
Desejar sempre mais
Recitar seu chamado
Deixar a agenda de lado
E gozar sem culpa
Sem horário marcado
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
CARMEN FAUSTINO: Sou Carmen Faustino, filha de Neusa Maria Bernardes, Antônio Faustino e neta de Manoela Lopes Bernardes e Silvéria Candido Faustino. Negona, mulher preta nascida e criada na periferia sul de São Paulo, atualmente morando em Salvador – Bahia. Sou poeta, escritora, editora, arte-educadora, ativista, gestora de projetos socioculturais e especialista em raça e gênero. Mestra e doutoranda em estudos de gênero e feminismos pela UFBA. Desde 2012 atuo em iniciativas de fortalecimento da literatura negra e periférica com coletivas de mulheres, através da editoração de antologias e oficinas de escrita. Sou co-fundadora do Baobá-Fortificando as raízes, de ações afirmativas sobre a lei 10639/2003 e mobilizadora do Núcleo de Mulheres Negras – O amor cura, grupo de acolhimento, cuidado e estudos feministas no Capão Redondo, periferia sul de SP.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
CARMEM FAUSTINO: A pele retinta não me deixou esconder que era negra. Eu sempre soube, acredito que não houve uma descoberta da negritude e sim das discriminações que o racismo promovia em minha vida. Esta percepção surge ainda na infância, em ambiente escolar. A consciência racial se estrutura em minha vida a partir da adolescência, através das letras de rap nacional e posteriormente frequentando os bailes blacks e as atividades do movimento negro.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade estão nos seus escritos?
CARMEM FAUSTINO: Escrevo sobre mim e sobre quem veio antes e caminha comigo, me protegendo. Sou ciente que minha ancestralidade se expressa em cada palavra que ouso colocar no papel, por isso tenho cuidado. Acredito que ao escrever, escritoras negras honram aquelas que não puderam contar suas histórias, nem registrar memórias de afeto, solidariedade, resistência e luta por transformações sociais e vidas mais dignas. Faço parte dessa gira negra ancestral.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
CARMEM FAUSTINO: Minha família é negra de pai e mãe. Hoje aposentados, meus pais foram trabalhadores formais de pouca instrução e sem discurso racial, mas conscientes das dificuldades impostas pela condição de raça e classe. No quintal com irmãs e irmãos cresci ouvindo Samba, Rap e Black Music. De forma nem sempre afetuosa, recebi cobranças sobre a importância dos estudos e alertas sobre as discriminações que poderia sofrer na rua. Mesmo mulher, sempre andei com documentos em mãos. Ambos foram fundamentais para a pessoa que me tornei hoje.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é, na sua opinião, a função social da sua literatura?
CARMEM FAUSTINO: A literatura lê e reflete o mundo, com o poder de destruir e construir imaginários coletivos. Meu compromisso com a literatura, enquanto escritora negra é fortalecer as narrativas de afeto, resistência e ancestralidade de mulheres como eu. Minha escrita se posiciona contra a supremacia branca e suas estruturas de poder.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
CARMEM FAUSTINO: Nos últimos anos as demandas acadêmicas tem feito de mim uma leitora-pesquisadora pragmática, buscando objetividade e direcionamentos específicos nos feminismos negros e decolonial. Em outro contexto, insisto nos livros para compreender as leituras que faço do mundo e dos lugares que transito. Sou uma leitora interessada pela literatura negra em geral, da poesia aos textos acadêmicos, procuro sempre priorizar escritoras e escritores negros.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
CARMEM FAUSTINO: Minhas negras influências estão nas mulheres da minha família e todas aquelas que subverteram ordens e estigmas sociais. Maria Firmina dos Reis, Maria Felipa, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Audre Lorde, Sueli Carneiro, Tula Pilar, Flávia Rosa, Anajara Tavares…são infinitas e suas trajetórias alimentam meus desejos de continuidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
CARMEM FAUSTINO: Conheci os saraus da periferia sul de São Paulo em 2008 e passei a frequentar assiduamente. Em contato com poetas, fui aos poucos me reconhecendo na literatura e libertando minhas palavras. Em 2012, mesmo com muitas inseguranças, tomo meu decisivo ato literário de aceitar um convite para publicar na antologia do Sarau do Binho (2012). A partir desta primeira publicação dou início a minha uma trajetória de editoração e publicação em antologias com foco nas escritoras negras. Em 2020 lanço meu livro de poemas eróticos Estado de Libido ou poesias de prazer e cura. Das publicações que assino a organização estão: Ser prazeres – Transbordações eróticas de mulheres negras (2021); Pilar Futuro presente – Uma antologia para Tula (2019); Coleção Sambas Escritos (2018) e Pretextos de Mulheres Negras (2013) entre outras. Como convidada, participei de diversas publicações como O livro Negro dos sentidos (2021), Revista Mahin (2020), Inovação ancestral de Mulheres Negras (2019), Um Girassol para seus cabelos – Poemas para Marielle Franco (2018), Griots da Diáspora Negras (2017), 180 gr. Antologia do Sarau do Vinil (2015), Além dos quartos (2015), Revista O Menelik – 2º Ato (2014), entre outras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
CARMEM FAUSTINO: É estar fora da norma, rompendo com estigmas sociais e o imaginário que distancia mulheres negras da palavra escrita. Conceição Evaristo nos alerta sobre a negação do país, no reconhecimento de mulheres negras como escritoras e isso é explicito quando me apresento como tal em novos espaços. Sempre há dúvidas, surpresas e descréditos sobre nosso fazer literário, portanto, ser escritora para mim, antes de tudo é um ato de resistência negra. O mercado editorial reflete essa sociedade e insiste em nos limitar ao papel da mulher sofrida ou musa inspiradora, nunca de protagonista da própria história. Eu edito, organizo, publico e distribuo meus livros de maneira totalmente independente. Sou uma trabalhadora da literatura.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que e quem você escreve?
CARMEM FAUSTINO: Escrevo sobretudo para mim, para transbordar o que não cabe no peito. Escrevo também para pessoas que se parecem comigo, para aquelas que de alguma forma se reconhecem em meu trabalho e lógico, para quem quiser ler. A palavra é livre e uma vez posta no mundo, ela chega onde tiver que chegar e as pessoa podem e devem escolher o que fazer com ela.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
CARMEM FAUSTINO: Acho que para escritoras negras e periféricas como eu, inspiração é um exercício constante de enxergar beleza e valor para além do retrato social e das dificuldades cotidianas. Já a transpiração se torna norma para escritoras negras, um trabalho árduo e dedicado com a palavra, para que ela ecoe e chegue aos lugares que precisam.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
CARMEM FAUSTINO: Meu processo de escrita nunca é linear, disciplinado ou pacífico. Tenho inúmeras crises e inúmeros textos inacabados, reescritos, alguns abandonados e muitos ainda secretos. É no cotidiano, por vezes caótico, que vou insistindo na palavra e buscando brechas para que ela ganhe formato de poesia, prosa e artigos.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em seus escritos?
CARMEM FAUSTINO: Eu escrevo em primeira pessoa, sou o eu-lirico dos meus textos e a narradora das minhas histórias. Assumo todas as responsabilidades da minha escrita.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
CARMEM FAUSTINO: Falo sobre o que envolve minha existência negra na diáspora. Tenho textos com temas diversos, mas com o lançamento de meu livro Estado de Libido ou poesias de prazer e cura em 2020, minha escrita se volta para os temas erotismo, prazer e bem-viver de mulheres negras, foco também de minha pesquisa acadêmica.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação de um livro?
CARMEM FAUSTINO: É antes de tudo a realização de um sonho individual e coletivo, com desdobramentos e reflexos para toda uma comunidade negra. Escritoras negras enfrentam inúmeros desafios para publicar, que vão desde as dúvidas que surgem sobre a importância do registro das próprias palavras, ao cenário de exclusão do mercado editorial, que ainda negocia quais narrativas e personagens negras serão difundidos. São muitos dificultadores, portanto, quando publicamos um livro, temos que celebrar e compartilhar com nossos iguais.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
CARMEM FAUSTINO: A intensidade do amor e a organização da raiva que carrego no peito, se tornando alimento para continuar.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Poderá nos oferecer cinco livros, de autores negros brasileiros, que na sua opinião, são fundamentais, na sua opinião?
CARMEM FAUSTINO: Quarto de Despejo: Diário de uma favelada – Carolina Maria de Jesus
Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves
Insubmissas lágrimas de mulheres – Conceição Evaristo
Coleção Cadernos Negros
Racionais Mc’s – Sobrevivendo no inferno
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Aponte, por gentileza, cinco figuras negras brasileiras importantes?
CARMEM FAUSTINO: Zumbi dos Palmares, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo e Mano Brown.
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Rede social: @carmen_faustino
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