A história da primeira linhagem celular imortal é uma narrativa complexa que toca em várias questões éticas, raciais e sociais no contexto da medicina e da pesquisa científica, pois, surpreendentemente tornaram-se uma das linhas celulares mais importantes da história.
Mulher, negra, pobre, vivia na época da segregação racial dos Estados Unidos pós-guerra como dona de casa. Nasceu e cresceu em uma pequena cidade chamada Roanoke, Virgínia , rodeada de outras tantas famílias bastante humildes e trabalhou boa parte de sua curta existência nas plantações de tabaco.
Henrietta Lacks, nasceu em 18 de agosto de 1920 e faleceu no hospital Johns Hopkins —Baltimore, 1951— aos 31 anos de idade com o corpo repleto de tumores (metástase), originados de um câncer cervical— carcinoma de colo de útero—, consequência do vírus do herpes vaginal ou HPV. Ela morreu sem saber que suas células foram coletadas sem a sua autorização enquanto agonizava no hospital, internada em uma ala qualquer destinada as “pessoas de cor”… Ela morreu sem saber que suas células seriam um “divisor de águas” para as pesquisas médicas em todas as partes do mundo . Ela morreu sem saber que suas células contribuiriam ativamente para avanços em diversos campos da medicina e viajou…
“Viajou” até para o espaço depois de morta. As células cancerígenas retiradas de seu corpo foram enviadas para um experimento de gravidade zero em uma missão americana. Tal façanha só foi possível graças a capacidade extraordinária das células de Henrietta de multiplicarem-se rapidamente , reproduzirem-se indefinidamente e não envelhecerem. Elas foram as primeiras células cancerígenas que continuaram dividindo-se fora do corpo humano — in vitro—e, por isso, consideradas “imortais”. Até hoje, setenta e três anos após sua morte , a cada 24h uma nova linhagem celular HeLa é reproduzida em placas de petri em laboratórios de todas as partes do mundo. Algo surpreendente e sem explicação, tratado pela ciência como uma anomalia celular.
A história também destaca o racismo institucionalizado na época pela medicina americana. Os direitos dos pacientes negros não eram levados em consideração, especialmente, os de baixa renda, vistos apenas como “cobaias miseráveis”, segregados e entregues à própria sorte dentro do sistema . As exaustivas pesquisas com as células de Henrietta sem o consentimento dela ou da família foi um bom exemplo disso, retratou como o sistema de saúde de seu país a enxergava desrespeitando os seus direitos em nome da ciência.
Ciência que não chegou aos seus descendentes , sem acesso aos mesmos avanços na assistência médica que as células de sua mãe ajudaram a tornar possíveis e tantas vidas salvaram. Durante muitos anos permaneceram à margem das pesquisas e sem qualquer tipo de indenização. Os filhos de Henrietta só tomaram conhecimento e foram consultados sobre a utilização das células sessenta anos após a morte de Henrietta quando foram procurados por uma equipe de geneticistas que acreditava ser a cura do câncer a manipulação dos genes de seus descendentes. De lá para cá, a família conseguiu um acordo inicial, em agosto de 2023, com a Thermo Fisher Scientific Inc., gigante do setor de biotecnologia, porém , a empresa recorreu alegando que o processo foi aberto depois que o prazo de prescrição expirou.
O legado de Henrietta Lacks estende-se além das contribuições científicas das células HeLa. A história levantou questões importantes sobre ética nas pesquisas, consentimento e o tratamento de pacientes de minorias. O livro “The Immortal Life of Henrietta Lacks”, escrito e publicado por Rebecca Skloot , em fevereiro de 2010, trouxe à tona toda a agonia de Lacks e seus familiares. Em 2017, o filme com o mesmo título estrelado por Oprah Winfrey foi ao ar.
A história de Henrietta tornou-se símbolo da luta por justiça e reconhecimento de todos aqueles que foram explorados em nome da ciência.
Escrito por:
Deise Veira
@deiseveira
Pedagoga social
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