NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora de hoje: Rozzi Brazil
SAGRADOS
Minha erva preferida é o alecrim, mas já foi a arruda. Conheci a arruda atrás da orelha do seu José Fernandes, um português que as rugas não eliminaram os seus traços de beleza. Calvo, o topo da cabeça nu, e fios ainda escuros lisos enfeitando a nuca, voz ligeiramente rouca, sotaque carregado apesar dos tantos anos de Brasil. Calças de tergal entre o preto desbotado e o marrom; camiseta regata por baixo da camisa de tergal. Os suspensórios, quase sempre caídos abaixo da cintura, dançavam em câmera lenta, engraçados, nunca graciosos, moviam-se na mesma lentidão que o seu corpo grande.
Eu não sabia, mas tinha naquele tempo um pouco de medo de velhos – não sabia qual deles se transformava no véio do saco. Mas esse era diferente, apresentou-me à arruda por trazer sempre um galho preso atrás da orelha.
Ele estava sempre atrás do balcão, daquele lugar, mistura de boteco e armazém. Prateleiras sólidas, sisudas, envernizadas, de madeira escura. Cibalena, Melhoral, saquinhos com temperos, especiarias. Pimenta do reino em grão e em pó, folhas de louro, colorau, orégano, canela, cravo. Dezenas de saquinhos diminutos, presos em carreira num papelão comprido, vertical. Cada tempero numa tira, eram enfeites, displicentemente arrumados na desorganização peculiar daquele boteco.
Eu não entendia suspensórios e achava que a camiseta era sutiã de homem.
Na frente do boteco, caixotes à guisa de mesinhas com homens jogando sueca, canastra e purrinha. Cachaças em copinhos pequenos transitavam com rapidez. Das mãos do Seu Zé para a mão do freguês, dali para a boca que se abria num sonoro estalo: – Ah!
Imaginava que era gostosa a cachaça, nem por isso tive vontade de provar. As cervejas circulavam imponentes, com ar de alegria. Cerveja sempre me fez pensar em felicidade. Nem por isso tive ansiedade de experimentar.
Entrando no boteco-armazém do Seu Zé, se olhasse pra cima via-se uma imagem de um indígena. Meio busto, uma mão no peito, semblante sério quase carrancudo. Ao seu lado às vezes ardia uma vela.
Seu Zé. Homem branco, com sotaque que me dificultava entender o que falava. Não era daqueles que davam atenção para crianças. Sorriso raro, Eu não sabia, mas parecia um homem sofrido. Eu não entendia, mas parecia um homem muito envelhecido para idade que tinha. Não devia ser fácil carregar um corpo tão grande, acordar tão cedo e passar tantas horas do dia e da noite no boteco quase sempre vazio, atendendo crianças-azougue como eu, que me esgueirava pelos cantos quando tinha movimento pra chegar no balcão duas ou três vezes o meu tamanho acima da minha cabeça. Encostava as costas na saca de arroz que ficava coladinha na saca de feijão, grudada, na saca de milho, por sua vez, colada à saca de avevita, milho picado que comprávamos para as galinhas lá do quintal.
Encostava-me naquelas sacas que guardavam a extremidade oposta ao balcão e assim ele podia me ver, saber o que queria e dava a volta pra poder me entregar o que tinha ido comprar. Eu ia muito lá comprar cigarros. Continental, Beverley, Kent. Às vezes, dois ou três ovos, uma cabeça de alho, aquelas coisas que acabam antes que o mês na despensa e tinha que anotar na caderneta, ainda em nome do meu pai que fazia tempo não morava, não pagava nada na nossa casa.
Tinha fumo de rolo que a gente usava para banhar os cachorros, acho que era pra curar bicheira e matar pulgas. A erva de santa maria que tira a pulga da casa depois que ela sai do cachorro, ele não vendia, tinha que buscar na Dona Alzira.
Ao lado da imagem do Caboclo, o indígena que ainda chamávamos de índio, um copo grande desses de botar vela de sete dias dentro, com água e uma galhada de arruda. Era dali que vinha a arruda de trás da orelha do Seu Zé. A vela, era comum, acesa clareando com luz pouca e bruxuleante animava as feições do Caboclo, negro como as boas madeiras escuras, sérias como a cara do Seu Zé. Não é uma saudade, mas sempre foi uma lembrança que lembro quase nunca.
Um dia, encontrei-o sem a camisa, só de camiseta trepado na escada, a cuidar do Caboclo. Puxou um pouco de lado e pude ver atrás de tudo, dois Pretos Velhos, um casalzinho. Na cuia dos Velhos café, na cuia do Caboclo, vinho. A arruda era pra todos eles e um galinho para detrás da orelha do branco véi, Seu Zé.
Quando a olhada era forte, a figuinha de guiné da criança se partia. Eram duas pequetitas presas num alfinete bem pequeno. Uma preta e outra branca. Uma era de arruda e a outra de guiné. Não importa qual quebrasse, precisava trocar. No armazém do Seu Zé vendia.
Também vendia toucinho, banha de porco e tinha o dia do sarrabulho e lá conheci minha primeira grande paixão: torresmo.
No dia que surpreendi seu Zé de camiseta regata trepado na escada falando com Caboclo, mas tratando com o casal de Pretos Velhos entendi um pouco porque ele falava tanto de Nossa Senhora, a de Fátima. Eu também ia à missa aos domingos e, às segundas, Pai Joaquim de Aruanda estava lá sentado no banquinho usando o corpo da minha mãe, pitando seu cachimbo dando suas broncas que ela nunca conseguiria dar e distribuindo conselhos sobre coisas que ela não tinha como saber. Depois que ele subia, minhas irmãs se punham a relatar tudo o que aconteceu. No início era confuso, mas não foi difícil compreender que minha mãe não estava lá. Mas a porrada comia, porque minhas irmãs contavam tudo do que a gente fazia e que o Preto Velho repreendia. Na minha cabeça pequenina, eu não entendia por que elas contavam. Mas o transe eu compreendia com muita facilidade
II
Desde menina ia na Dona Alzira. Uma choupana no meio de um bambuzal e outras plantas, um rio correndo ao lado. Dona Alzira era da minha cor, tinha cabelos tipo os meus, nem liso nem crespo. Usava vestidos sem feitio, colocava muito as mãos na cintura e ficava parecendo um bule magro. Tinha voz suave e aquele quintal imenso combinava com ela, sua suavidade e beleza. .Tudo combinava: o verdamarelobranco das plantinhas, o som dos bambus cantando com o vento, o rio em contracanto e os passarinhos e maritacas.
Dona Alzira se inteirava do motivo da visita. No início era eu. Essa menina não sossega. Essa menina tá barriguda, deve ser verme, só pode. Essa menina se assusta com tudo. Conforme eu crescia, começava a entender as coisas direito e outras crianças iam ocupando o meu lugar diante do olhar perscrutador de Dona Alzira frente a lista de queixas de adultos preocupados com os sintomas das crianças que tinham caganeira; choravam sem parar; perderam o sono tranquilo em algum lugar. Quando o bebê sobressaltado pulava no berço como se tivesse sonhos maus, torcia a carinha, fazia beicinho. Era hora de levá-lo para Dona Alzira rezar. Ela ia ao canteiro e buscava a erva apropriada para cada caso. Rezava e a gente só ouvia o sibilo, as palavras saíam como vento curto, enquanto a mão movimentava o galinho de erva com agilidade. Por fim, ela olhava pra mim e perguntava: – E você?
Rozzi Brazil: Qualquer que fosse a resposta, acabava em reza. Aquela que não se entedia, mas funcionava. A melhor rezadeira do bairro. E como o bairro era grande.
Mas eu só sabia o que era arruda, porque tinha visto na orelha do Seu Zé. Aquele portuga branco que sem uma palavra me ensinou que arruda, Preto Velho, Caboclo, vela, Nossa Senhora e o boteco com tudo o que ele reúne e contém são sagrados.
CONVERSA
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
ROZZI BRASIL: Eu sou Rozzi Brasil, pessoa preta, do Axé e LGBTQIAPN+, cria da Zona Oeste do Rio de Janeiro, adotada aos nove meses de idade. Escritora e poeta lançando meu primeiro livro de poemas, Carne Viva. Autora de Histórias da Cabrochinha, livro de “narrativas curtas” e Vida Crônica (no prelo); participei de oito antologias entre 2020 e 2022. Professora por formação e vocação, ativista antirracista, como pessoa preta e repleta de interseccionalidades precisei ampliar minhas aptidões, tornando-me realizadora audiovisual (premiada), fotógrafa, designer, podcaster e apresentadora. Sou bastante coletiva e os meus projetos refletem isso, sou cofundadora da primeira parceria de samba enredo composta só por mulheres em escola de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro – Samba das Guerreiras; na Portela; cofundadora do MUQ- Movimento Mulheres nas Quebradas do PACC/UFRJ – Programa Avançado de Cultura Contemporânea/Universidade Federal do Rio de Janeiro – grupo feminista voltado para a produção literária de mulheres da periferia através do projeto #LivresLivros do qual sou idealizadora; fundadora da Associação Casa da Vida; Idealizadora e correalizadora do movimento Vem pra Cá! Sarau, que tem foco no protagonismo literário das mulheres periféricas. Como Mestre Quebradeira da Universidade das Quebradas, laboratório de tecnologias sociais da UFRJ, venho pagando os boletos atuando como mediadora/professora no Curso de Formação de Escritores Machado Quebradeiro que acontece na Academia Brasileira de Letras. Duas filosofias de vida me deram e dão lume aos meus caminhos: “Se não concordo, não participo”; 2- “Viver e deixar viver”. Meu epitáfio já está pronto: Viveu a vida inteira tentando aprender a viver.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade está nos seus escritos?
ROZZI BRASIL: Eu escrevo desde os oito anos de idade, mal falava e já escrevia, creio que seja um sinal da ancestralidade. As memórias são bem frequentes nos meus textos e poemas, assim como as vivências que a modernidade soterra sem substituir, sou muito interessada em registrar vida, costumes e valores do meu povo suburbano. A minha ancestralidade está sempre presente na minha escrita mesmo quando não citada diretamente, é o meu sotaque, minha pertença, a minha principal base de formação como pessoa e escritora.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
ROZZI BRASIL: Uma guerra sem fim. Cansativo, mas compensador. A disputa pelo direito do que já é nosso e, de certa forma, não está em nossas mãos. É assistir o mercado editorial validando seu antirracismo inverídico através da cooptação de um ou outro indivíduo negro com o percentual de negritude que lhe é palatável. Há uma resistência por parte desse mercado em valorizar negros retintos assim como mulheres mais velhas, esse mercado gourmetiza as essências, embala a vácuo para consumo. Então, eu penso, que nós precisamos mudar nossos alvos, criar um sistema paralelo a esse sistema, isso vem acontecendo na movimentação dos coletivos literários de mulheres negras, nas antologias que viabilizam nossas publicações, no entanto é necessário batalharmos por organização e estratégias.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
ROZZI BRASIL: As duas são faces da mesma moeda, em conjunto ou separado, mas a transpiração potencializa a inspiração. Não se pode ter preguiça, nem se achar genialmente inspirado sempre, o tempo todo. Ninguém é.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
ROZZI BRASIL: Em essência sou cronista (e gosto bastante de ser) e o cronista fala de tudo um pouco, no entanto, poderia dizer que entendendo o social como o balaio que abarca tudo, e principalmente, atravessa as pessoas pretas em todas as suas camadas, somos sempre atingidos por ele, não tem como esse não ser o meu tema mais recorrente.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
ROZZI BRASIL: Psicográfico (risos). Eu coloco uma frase que é o fio condutor do texto e a partir daí a mão escreve praticamente sozinha, depois eu retomo o texto e mudo tudo ou faço os arremates apenas, processo que pode levar meses. Quantas vezes eu olho os meus textos, tantas vezes vou, pelo menos, desejar alguma alteração, sempre visando simplificar a linguagem; só uma vez produzi um texto que em dado momento achei que estava perfeito. Também reservo pelo menos duas horas do meu dia para escrever e/ou organizar o que já está escrito, todos os dias. Uso a técnica do desafio, por exemplo: Produzir um conto ou fazer um poema longo ou fazer poetrix – minha nova mania. Também criei “sessões” para mim mesma: Crônicas de Domingo, Textos de Quinta, Café Com Prosa, Café Com Poesia e produzo os textos com regularidade, como se fossem ser publicadas em algum veículo. às, vezes os compartilho nas redes sociais.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?
ROZZI BRASIL: Fui entregue, ainda bebê e bastante doente para uma outra família criar, era uma prática bastante comum na época, pelo que entendi, ainda que eu só tivesse mais uma irmã biol[ogica. Conheci meus pais, os via bem menos do que gostaria, não tinha nenhuma amargura pela minha adoção, era uma relação de distância porque eles se colocaram dessa forma e eu respeitei, não impunha minha presença, não era o que eu gostaria, mas era o que eu (não) tinha. Era bom saber de onde vinham determinadas características e habilidades e até traços físicos. Já na minha família adotiva, meu pai saiu de casa quando eu tinha cinco anos e eu fiquei mamãe team. Tenho poucas lembranças dele, éramos muito afastados, mas sem raiva ou traumas da minha parte, não era necessário, minha “mãe de criação” era o sol e eu o girassol. Mesmo quando não aceitou minha homoafetividade tratei de reconquistá-la. Não era pessoa de demonstrar afeto, eu estimulava conversas e contatos, era vital pra mim
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
ROZZI BRASIL: Tenho um alter ego mesmo quando é um eu lírico. Surgiu no meu primeiro livro, a Cabrochinha, uma negra não tão retinta, que teve de lidar com a concupiscência masculina por ter a negritude que a sociedade machista e racista pode suportar e não respeita. Creio que tudo o que eu escrevo passa por essa lente que não dá para abandonar, às vezes no feminino e outras no masculino.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?
ROZZI BRASIL: As experiências vividas e que vi viverem e as que eu gostaria de ter vivido. A natureza, principalmente estrelas, lua, sol e mar. Meus bichinhos de estimação, todos têm vários textos como protagonistas. A angústia de ser mulher num país misógino e feminicida e sobre tudo, os amores que invento, porque amar é tão bom que nem precisa ser verdadeiro. Melhor ficcionalizar um amor do que relatar as dores de (des)amor.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitor?
ROZZI BRASIL: Sou apaixonada por biografias! Faço rodízios (doações) constantes de livros e elas não entram no rolo.
De uns anos para cá me detenho nos escritores de periferia, preferencialmente as mulheres e venho desenvolvendo um gosto por poesia que sempre gostei de escrever, mas não curtia muito ler, com raríssimas exceções. Infelizmente, o tempo não é suficiente para ler tudo o que desejo. Precisamos regulamentar a profissão de escritor e implantar a licença-leitura. Seria maravilhoso! Mas também perigoso…
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
ROZZI BRASIL: A do primeiro foi um desastre! A do segundo está sendo bem tranquila, mas eu sinto falta de companhia nos fazeres pós escritas, principalmente na leitura crítica, organização e preparação, fases do processo que muitos escritores não conhecem porque não são disseminados no pacote de serviço das grandes editoras que dão as cartas em tudo, acabando por definir o que o brasileiro lê. Fora isso, eu amo lançamentos e gosto de ter um livro para apresentar nos lugares onde vou. Abstraí a questão problemática da distribuição, entendo: meus livros não vão para livrarias e aceitei com orgulho isso que me torna marginal e a minha literatura também.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
ROZZI BRASIL: Em primeiro lugar, para pensar; depois para me comunicar, escrevo o que falando não encontra ouvidos. A escrita é a minha forma de existir e de me encontrar com as pessoas.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influências?
ROZZI BRASIL: No alto do pódio: Conceição Evaristo, ponto. Lília Guerra; Nei Lopes; Cruz e Souza, Lima Barreto, Cidinha da Silva; Eliane Alves Cruz; Cristiane Sobral, Ryane Leão; Carol Dall Farra; Tim Maia; Toni Morrison, Alice Walker e Maryse Condé. E tem Carolina Maria de Jesus, que não é bem uma influência, mas uma grande identificação.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
ROZZI BRASIL: Eu nunca quis publicar um livro impresso porque ele não chega nas pessoas que necessitam dele; porque o escritor é escravizado pelo mercado editorial dentre outros motivos, de modo que, o meu primeiro grande ato literário foi romper com as minhas ideologias e crenças pessoais e decidir publicar um livro com a minha própria história fatiada em crônicas e ensaios.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
ROZZI BRASIL: Sim, como já tive oportunidade de dizer, as nossas experiências negras são fortemente atravessadas pelos aspectos e contextos do social, suas relações para conosco, o lugar marcado no bilhete a nós destinado está o tempo todo movimentando ações e reações. Não dá pra sermos diferente, não podemos ser iguais e a escrita é realidade do reflexo e não necessariamente reflexo da realidade.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo Ancestral em seus escritos?
ROZZI BRASIL: Acho que a maneira de registrar as minhas experiências como uma espécie de alerta, um mapa de viagem, um gatilho para intuição das mais jovens ou desavisadas; também a referência de que vale a pena insistir no que se é apesar das condenações, sempre há vida com possibilidade de alegria depois do abuso, do caos, do medo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
ROZZI BRASIL: Finalmente temos uma biblioteca (e ainda falta muita gente, certamente) com os temas diretamente relacionados a nós, com a nossa textura, temperatura e filosofia, dos ensaios ao entretenimento. Estamos nas histórias com nomes e enredos e não apenas coadjuvantes, suportes para a jornada dos heróis brancos. Estamos on. Isso é o movimento inverso à tática da separação pelo idioma, praticada para que a minoria pudesse controlar a maioria sequestrada. Eu me preparo prestando atenção em todas as possibilidades de conexão com os meus, é isso que recuperará nossa liberdade e trará reais oportunidades.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
ROZZI BRASIL: Inicialmente, eu escrevo para aqueles que não têm o hábito de ler por não se identificarem com o tipo de literatura do “mainstream” e não têm possibilidades de conhecer outras literaturas mais próximas, associam leitura a tarefas (obrigatórias) escolares, não entendendo literatura como entretenimento e forma de aprendizagem lúdica; Até aqui tivemos um sistema educacional que tira a ludicidade do livro depois de falhar o projeto de alijar pretos e pobres da Educação.
Posteriormente, escrevo para pessoas com curiosidade. Eu sempre disse que não escrevo pra mim, isso com certeza, jamais.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
ROZZI BRASIL: Crítica, alerta e memória.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
ROZZI BRASIL: Em 2019 fazendo o curso de Direitos Humanos da Universidade das Quebradas. De uma só tacada, me vi negra, entendi as consequências disso ao longo da minha vida e que eu atribuía a outros fatores; percebi que pardo é uma invenção animalizante/objetificante visando reduzir o volume de negros e implantar um preconceito de classe dentro de uma mesma classe reduzindo as possibilidades de um “motim”. Não adoto nem admito ressalvas que “suavizem” a minha negritude. Ser negro é muito mais que cor de pele.
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