NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO
Série de questões enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam
Escritora: Celinha Reis
Respirar
Mundo Negro
Indígena
Africano
Diaspórico
Rural
Urbano
Pretos
Dispersos
Pelo tráfico
Povo originário
Atacado
Aldeias em chamas
Crianças roubadas
Catequizadas
Doenças sem cura
Expulsos da própria terra
A palavra sem valor
Registro contábil
Busca ouro
Mercantiliza humanos
escravidão
Bandeiras de caça
Gente laçada
Feito bicho
A palavra rendida
Mundo letrado
Leis
escrituras
Controla
a terra
as pessoas
os objetos
Pilhagem
Ciência dogmática
Violência do cais ao sertão
Escola
Disciplina corpos
coloniza mentes
Campo vazio
Polis transbordando
Barracos empilhados
A cidade é dos ricos
A favela dos pobres
Violência policial
Ordem neoliberal
Aboliu a escravidão
Liberdade
Não veio
Sem terra
Sem trabalho
Sem teto
Apertados
Sufocados
Improvisos urbanos
CONVERSAS
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
CELINHA REIS: Licença! Sou Celinha Reis, mulher negra afro-indígena, poeta, escritora, educadora, historiadora, mestra e doutora em história social. Sou cria dos movimentos populares, ativista nas causas, antirracista, feminista e do bem viver. Sou mãe do Paulo e da Tauana. Desde 2011 participo no movimento cultural na cidade de São Paulo, sou percursionista/dançante no bloco afro Ilú Obá de Min, me permitindo viver minha expressão poética. Minha caminhada literária conta com participação em antologias como Sarau dos Mesquiteiros, Sarau da Brasa, Sarau Elo da Corrente, Louva Deusas, Ilú Obá de Min, Me Parió Revolução e Cadernos Negros . Recentemente pari meu primeiro livro autoral de poemas, o Significância.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para quem você escreve?
CELINHA REIS: Entendo minha escrita como uma forma de existir, me expressar, me comunicar com o mundo, com todas as pessoas que se disponham a dialogar com o que escrevo. Escrevo pensando que tenho algo a dizer, a compartilhar no campo das ideias, no mundo das palavras.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
CELINHA REIS: A literatura que eu pratico é negra, feminista e periférica. Através dela me posiciono socialmente, sendo uma voz ecoando muitas outras; trago a palavra da oralidade, escrita e corpórea em literatura viva. Evidencio a memória da escravidão, da colonização, os impactos do patriarcado na vida das mulheres, das crianças, da população marginalizada. Sobretudo, trago a insurgência que constrói rotas de liberdade, recriando a vida em contexto da necropolítica. Trago a sabedoria negra de reexistir e preservar a cultura ancestral e beber dessa fonte como poção mágica que delineia novos tempos, entendendo que o futuro é hoje.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
CELINHA REIS: Penso que sempre soube, desde criança. O racismo faz a gente perceber que somos discriminados, indesejados, preteridos socialmente; na infância só não sabemos nomear essa percepção. É sendo vítima do racismo que a gente aprende que não é igual. Na adolescência tomei consciência de que muitas vezes fui vítima de racismo, entendendo a partir daí o meu pertencimento racial. Minha consciência negra foi despertada por um trabalho desenvolvido por um padre, que tinha o compromisso de promover o letramento racial para a juventude na cidade em que eu morava nessa época, padre Edir Soares. Nessa época eu cursava o ensino médio. Lembro-me que fiz um cartaz denunciando o racismo e afixei no corredor da escola em que eu estudava, essa foi a minha iniciação nesse universo de luta contra o racismo. Penso que é nesse momento em que me aproprio de minha negritude e passo a vivê-la intensamente, até hoje.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Oralitura – definido por Leda Martins que usa o termo para designar as histórias e os saberes ancestrais passados não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas culturais. Esse conceito se faz palavras em seus escritos?
CELINHA REIS: Acredito que sim, Oralitura é um conceito que me traz uma sensação de conforto, me sinto em casa. Sou originária do encontro de culturas de tradição oral, cuja cosmovisão é inscrita na corporeidade performática, que expresso em minha escrita. Tenho um poema, publicado numa antologia do Sarau da Brasa 5, que dialoga com essa ideia – lendo Leda Martins recentemente, me lembrei dele, “Literatura Elo em Brasa” que diz: literatura é quando a vida se expressa/ Não somente presa na palavra escrita ou falada, mas também compartilhada/ nos corpos/ cabelos…nas palmas/ no canto,/ encanto…”. Pensar uma literatura descolonizadora, passa por desenvolver uma escrita que se ancore na multiplicidade de grafias existentes e transpor em palavras escritas, é um desafio. Gosto muito quando Leda Martins, em seu livro “Performances do tempo espiralar”, denuncia o conflito criado pelo eurocentrismo, ao estabelecer uma hierarquia que coloca a escrita num lugar de superioridade em relação a oralidade; elucidando que vários povos, não criam sobreposições entre as múltiplas linguagens existentes em suas culturas, elas cumprem suas funções sociais de comunicação e expressão sem hierarquias. Esse é o caminho literário que percorro, onde me encontro em processo, expressando os jeitos afro-indígenas de fazer as críticas sociais, de compartilhar cosmovisões dessa ancestralidade que nutre modos de ser e estar no mundo, nos permitindo ser seres múltiplos em múltiplas temporalidades; que se abre para universos em que o pensamento cartesaniano, cuja concepção de tempo linear e cronológica não dá conta, e o tempo espiralar faz todo o sentido.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitora?
CELINHA REIS: Me vejo uma leitora que lê o mundo, e nos livros encontra a ampliação da possibilidade de compreender esse mundo; a leitura melhora a minhas condições de interpretá-lo. Vejo a leitura como ferramenta de análise me propiciando condições de discernir para fazer boas escolhas. Assim como, me qualifica para contribuir em ações coletivas de construir caminhos para o Bem Viver, o que significa restabelecer relações de convivência pautada no respeito entre todos os seres que habitam o planeta. Nesse sentido sou leitora crítica, criteriosa nas minhas escolhas de leituras. Sou leitora reflexiva, gosto de ler sem pressa, de saborear as palavras, de viajar nas ideias que a leitura propõe. Para mim ler é um diálogo.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
CELINHA REIS: Publicar Significância, meu primeiro livro autoral, foi a construção de um quilombo em forma de livro. Fazendo uma analogia com o provérbio africano que diz, que para educar uma criança precisa de uma aldeia inteira, a produção de um livro, especialmente vindo de uma mulher negra e periférica, precisa de um aquilombamento. Tive a alegria e a honra de ter pessoas muito especiais nessa gestação editorial. Há mais de dez anos vivenciando a arte da palavra em saraus, especialmente no Sarau Elo da Corrente e Sarau da Brasa, e ter a oportunidade participar de antologias no movimento literário periférico, feminista e negro, eu escritora foi surgindo. No momento do parir um livro solo contei com o apoio das integrantes da Coletiva Editorial Me Parió Revolução; de passar por uma roda de conselho formada por Michel Yakini-Iman, Raquel Almeida, Douglas Alves do Sarau Elo da Corrente, a revisão de Sônia Bischain. As belas palavras do prefácio por Carmen Faustino, que generosamente além do texto, também me presenteou com sua leitura crítica. A belíssima ilustração da capa, feita pela artista plástica Renata Felinto, foi uma experiência de muita troca, um processo muito feliz até chegar nessa imagem que considero um portal mágico. A diagramação feita por Sandrinha Alberti, dando um corpo gráfico ao livro, que expressa com naturalidade sua identidade poética, a perceber pela tipografias escolhidas, o diálogo das ilustrações do artista plástico Leandro Batista com os poemas, compondo uma arte visual que enche os olhos pelos detalhes, uma estética singular, simples e sofisticada. Penso que os poemas são de minha autoria, mas ainda assim, a gente não escreve só, pois as inspirações vêm de muitos lugares, envolve muitas pessoas, muitos acontecimentos internos e externos. O livro, tal como ele é, entendo como uma produção coletiva afetiva feita num mutirão, a muitas mãos, olhares, leituras, por isso chamo-o de quilombo. E, também, porque quilombo, historicamente, faz referência a comunidade que se constrói na luta por emancipação, e nesse caso por espaço no mundo editorial, onde as grandes editoras dominam e pouco se abrem para mulheres negras e periféricas. Publicar nesse país para quem está na margem é um grande feito e nesse caso, um feito comunitário. O nome Significância faz jus a todo esse processo, pois é sobre o que faz sentido, me proporcionando muitas emoções, uma alegria imensa em viver essa experiência.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
CELINHA REIS: Escrevo para quem se dispõe a ser o leitor do que escrevo. Não penso num leitor ou público específico. Tenho tido devolutivas de públicos diversos. Minha escrita é negra, feminista e periférica, ilusoriamente pode parecer que só quem se identifica com esses perfis vão se interessar, mas qualquer pessoa que queira dialogar com esse viés de escrita encontra conexão. Meus poemas eróticos, por exemplo, eu gosto de compor de uma forma que pessoas de todos os gêneros possam se imaginar na narrativa.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influências?
CELINHA REIS: Minha avó Maria Rosa Reis foi contemporânea de Carolina Maria de Jesus – nascida na Bahia. A imagem de Carolina de lenço, o jeito de amará-lo na cabeça, seu corpo negro magro me lembra minha avó. Lendo Quarto de despejo, muitos momentos me remeteram aos relatos que ouvi de minha avó sobre sua vida. Diferente de Carolina, minha avó foi totalmente privada de aprender a ler e escrever, na oralidade inscreveu suas vivências, o que me possibilita saber e poder. Eu me perguntava se minha avó era uma Carolina Maria de Jesus ou Carolina Maria era uma Maria Rosa Reis? Nasceram no mesmo ano, em lugares distantes uma da outra, mas viveram realidades muito semelhantes. Ambas com muita disposição em narrar suas experiências. Mulheres de muita sabedoria e lucidez inspiradora; Carolina na escrita e Rosa na oralidade legaram aos seus muitos valores, principalmente o de ter resiliência ante as intempéries da vida. Minha avó era a mulher dos provérvios, sempre tinha um para expressar sua compreensão das coisas, das relações, do mundo físico e espiritual.
Considero uma influência, também, importante na minha vida, padre Edir Soares, um homem que se dedicou a despertar a consciência negra da sua comunidade. Tive a sorte de sentar para aprender com ele. Com quem aprendi a importância da coerência, a força das narrativas ancestrais africanas, a importância do compromisso e dedicação em aprender profundamente sobre a história e cultura negra. E, que tão importante quanto me reconhecer negra é entender a importância do meu engajamento na luta antirracista.
Na literatura tenho muitas influências, Conceição Evaristo, Mirian Alves, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Elizandra Souza, Akins Kintê, Raquel Almeida, Michel Yakini-Iman e outras tantas. Li Conceição Evaristo antes de entrar no movimento literário, nem me lembro como seu nome chegou aos meus ouvidos, ela não era famosa ainda, adquiri seu livro, Ponciá Vicêncio, pelo site da Estante Virtual, foi paixão à primeira leitura e só cresceu com suas produções seguintes. No caso de Mirian Alves tive a felicidade da convivência, em encontros organizados por ela e Raquel Almeida reunindo escritoras negras. Morar em São Paulo me deu a oportunidade viver uma escola literária de convivência com esses escritores que citei aqui, li seus livros, e tive a oportunidade de trocar ideias com eles e alguns estabelecer vínculos de amizade profunda.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
CELINHA REIS: Escrever o meu primeiro poema, Mães de Maio, fui motivada pela indignação e desejo de abraça-las; esse abraço saiu em forma de poesia, o que significava me posicionar ao lado dessas famílias que perderam seus filhos e filhas na grande chacina de 2006. Encontrar o Sarau Elo da Corrente, ser acolhida e poder me engajar com essa comunidade poética que se expressa, faz política cultural de insurgência.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
CELINHA REIS: Conceição Evaristo nomeou a escrita dos que experienciaram a escravidão sendo o escravizado, a colonização sendo o colonizado. Escrevivência ressoa em minha escrita. Não é no jornal que encontramos assunto ou conteúdo para nossas escritas, mas na nossa vivência, na experiência de nossos ancestrais. Entendo o termo escrevivência como letra viva, que quebra o silêncio do choro reprimido, da violência ocultada, da fome ignorada, da desumanização experienciada. Trata-se da escrita que preenche lacunas. Uma escrita-memória que não permite o esquecimento das atrocidades, explorações, manutenção da colonialidade. Penso escrevivência como um gênero de escrita insurgente, que reivindica reparação histórica. Tenho um poema curtinho, que chamei de Não se despedace: Maria nasceu Rosa/Pétalas de seda/Dos espinhos valera-se. Essa poema eu me inspirei em minha avó materna, Maria Rosa, que dizia pra suas netas não colocarem o nome de Maria em suas filhas, pois pensava que Maria sofre muito, falando de si. Vejo a história de minha avó em Carolina Maria de Jesus quando leio “Quarto de despejo”, como Tula Pilar também se reconheceu, se intitulando uma Carolina. Nós escritoras negras temos a história desse país inscrita em nossos corpos, essa consciência se faz letra em minha escrita.
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NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
CELINHA REIS: É ter muito pra escrever, é ter uma escrita pulsante, mas como a vida de negra é difícil, sobreviver é prioridade. Viver da escrita é um sonho. Contudo, me expressar através da escrita dá sentido a minha existência; é uma arte que vou vivenciando em passos lentos. Demorei para me permitir ser escritora. A colonialidade incutiu na minha cabeça que ser escritora não era pra mim, então eu escrevia com as palavras dos outros, e não com as minhas. No movimento literário, nasceu uma escritora que fala com a própria voz, ecoando vozes que trago comigo, de meus ancestrais, de minha comunidade, daqueles que vivem dilemas comuns aos meus. Tenho compartilhado minha escrita em livros coletivos, que chamamos de antologias literárias; nos saraus; carrego meus livros na mochila, como toda escritora independente e periférica.
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