Milton Santos foi laureado com maior prêmio da geografia mundial, o Vautrin Lud
Poucos intelectuais brasileiros desfrutaram do impacto teórico, reconhecimento político e de aderência pública tal como o geógrafo afro-brasileiro Milton Santos. Sua obra, reconhecidamente extensa, crítica, original e profunda, correu o mundo, granjeando-lhe fama e respeito.
Não é para menos. A contribuição de Santos para a geografia, oferecendo métodos e ferramentas de análise que aprofundaram o conhecimento do espaço geográfico, colocou em cheque as perspectivas tradicionais que campeavam na geografia.
Propondo o espaço como uma dimensão vinculada a contextos histórico-sociais, a disciplina passou a postar no seu horizonte as contradições que opõem os homens entre si, que para Santos, possuem interface espacial. De igual modo, rubricava que a organização do espaço, é ela mesma, um fator de peso no direcionamento e articulação da convivência humana, que tem o supremo poder de inaugurar coisas novas.
É assim que em 1994, coroando magnífica vida acadêmica, Milton Santos tinha em mãos o maior prêmio da geografia mundial, o Vautrin Lud, considerado o Nobel da geografia. E mais: o brasileiro foi o único geógrafo originário do Terceiro Mundo laureado com tamanha honraria.
Deixando este mundo em 2001, a contribuição genial do geógrafo segue, iluminando a ciência e a atuação de todos que lutam por uma sociedade melhor. Neste sentido, seria meritório anotar para além do brilho intelectual e do ativismo social, Santos era um cidadão preocupado com o racismo e os impactos reconhecidamente negativos que provoca no edifício social.
Sendo ele mesmo afro-descendente, tinha clara noção de que o preconceito racial no Brasil persevera impregnado de conotação estrutural, determinando que a marca mais notória do fenômeno esteja conotada de uma naturalização da discriminação, nota matricial no processo de mutilação da cidadania afro-descendente.
Esta posição é muito evidente no esclarecedor depoimento que o geógrafo prestou no ano 2.000 ao jornal Folha de São Paulo. Sem meias palavras, eis como Santos sentenciou:
“A marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é também duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Para eles, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo” [ … ] “a chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado – lá embaixo – para os negros. E assim tranquilamente se comporta”.
É sabido, a segregação encontra apoio no reinado secular do racismo na história brasileira, com a ideologia do branqueamento ocupando posição de proa. Negando qualquer integração real do negro na sociedade nacional, a diluição fenotípica dos negros e a extirpação da matriz africana seriam práticas modelares visando fagocitar – isto é: destruir paulatinamente- a presença negra no espaço nacional.
Tal negação do negro é tipificada na atitude deliberada de distanciamento para com a África, na desqualificação das religiões afro-brasileiras, na padronização estética centrada em padrões europeus e na exclusão do negro dos postos mais influentes da sociedade, sendo a meta não declarada de esse movimento instituir no Brasil uma nação branca, europeia e ocidental.
Note-se que esta predisposição não se restringe ao imaginário. Pelo contrário, demonstra enorme versatilidade na materialização de ações discriminatórias duras, contumazes e violentas. Nos anos 2000, os negros eram 64% dos pobres e 69% dos indigentes, ao passo que o Brasil branco era 2,5 vezes mais rico do que o Brasil negro.
Ultimamente o país presenciou certa alteração neste quadro. Porém, estudos mostram que a desigualdade persiste. Em 2009 os brancos compunham 75,07% dos 10% mais ricos, ao passo 72,9% dos mais pobres eram negros. Em 2012, os negros tinham renda 36,11% menor em média do que os brancos. Apenas 37,4% dos universitários eram negros. Grupos como idosos e mulheres negras são particularmente vulneráveis e desfavorecidos.
As comunidades quilombolas formam mais de 3.500 assentamentos no território nacional. São uma das mais incisivas marcas da presença negra na territorialidade brasileira, fruto de uma resistência que perdurou por gerações sucessivas .
Mas, no máximo 10% destas terras estão tituladas. A despeito deste índice inquietante, em Março de 2013 o mandato Dilma Rousseff somava irrisórios 632 hectares de terras tituladas. Saliente-se que mesmo os 59,6 mil hectares titulados nas duas gestões Lula (2003-2010) e dos 415,2 mil nas duas de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), também estiveram longe de zerar o déficit de institucionalidade das comunidades negras rurais.
Neste cenário, a omissão em tornar efetiva a Lei nº. 10.639 – que propõe mudanças curriculares em prol da herança negra – tonifica a reprodução de imagens mentais preconceituosas, energizando o racismo estrutural, cuja tônica tem sido a faculdade de se recompor, preservando o objetivo central de manter a população negra apartada da sociedade nacional.
Ademais, a Lei nº. 10.639, enfrenta manobras contrárias à sua efetivação. Confira-se: no ano de 2009, 1.953 dos 5.565 municípios brasileiros (35,1% do total), confirmaram capacitação de professores na temática raça e/ou etnia. Não obstante a porcentagem cientificar certa deferência pela legislação por parte dos gestores municipais, arrole-se que somente 245 prefeituras (4,4%), listaram a iniciativa entre as cinco medidas priorizadas pela educação municipal. Então, seria forçoso reconhecer a existência de claros sinais da escassa receptividade do temário na pauta institucional.
Ao lado da incipiência dos cursos de capacitação do magistério, medidas básicas como a criação de disciplinas com foco na África e no temário afro-descendente, integrando a grade disciplinar das universidades, assim como a mudança dos currículos (que perpetuam postulados eurocêntricos), não tem observado progresso real. Existem também aspectos qualitativos da aplicação da Lei nº. 10.639. Indo direto ao ponto: meramente introduzir “conteúdos” sobre África ou cultura negra no ensino é inútil. Dantes, teria precedência elucidar qual conteúdo é disponibilizado aos estudantes.
Nesta perspectiva, retenhamos que Milton Santos entendia ser uma tendência de sistemas desequilibrados tão somente o agravamento dos problemas e o alargamento dos abismos que separam as pessoas. O racismo estrutural é clara evidência desta entropia.
Para superar a entropia, Santos advertia para a necessidade das mais amplas maiorias, grupos e segmentos sociais participarem da construção de novos paradigmas. Ao mesmo tempo, pregava que novas formas de pensar e de agir no mundo não podem ser gestadas num laboratório e sequer serem fruto da aspiração solitária de um pensador, por mais genial que seja.
Sublinhava enfim que a questão racial pode – e deve – ser enfrentada pelo cidadão em geral. Mas subentendendo a construção de um projeto coletivo de país.
Deste modo, o tempo e o espaço, ainda que agregando forte componente inercial, podem transfigurar-se no berço do inédito, de novas modalidades de coexistência e de construção do futuro.De um futuro que abra suas portas para todos e que para tanto, solicita com urgência e prontidão, um país efetivamente democrático, inclusivo e anti-racista.
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O FABULOSO REINO DOS MANSAS DO MALI
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O BAOBÁ NA PAISAGEM AFRICANA: SINGULARIDADES DE UMA CONJUGAÇÃO ENTRE NATURAL E ARTIFICIAL
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MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, coordenador editorial, professor universitário, antropólogo e pesquisador africanista. Tem graduação em Sociologia (USP, 1982), Mestrado em Antropologia (USP, 1997), Doutorado em Geografia (USP, 2006), Pós Doutorado em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutorado em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutorado em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015). Waldman atuou como consultor internacional da Câmara de Comércio Afro-Brasileira e professor nos Cursos de Difusão Cultural do Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP). É colaborador do Jornal Cultura (de Luanda) e atuou como articulista na revista Brasil-Angola Magazine (São Paulo). Autor de dezenas de textos centrados no temário de África e Africanidades, é co-autor de Memória D’África: A temática africana em sala de aula (Cortez, 2007), obra de referência no campo africanista.
MAIS INFORMAÇÃO:
Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br;
Currículo Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474;
Verbete Wikipédia english edition: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman.
Contato E-Mail: mw@mw.pro.br
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