Não há rigorosamente nenhum registro sobre Zerai Deres, herói popular etíope e eritreu, em língua portuguesa.
Sua trajetória – que se confunde com a história da Etiópia contemporânea – não é, pois de conhecimento da opinião pública brasileira.
Todavia convém registrar: a Etiópia é uma nação africana milenar, fato que solenemente não coaduna com a imagem negativa alimentada pela mídia e por notas preconceituosas que desqualificam sua participação na cultura humana universal.
Cumpre sublinhar que o país é um dos berços da civilização. No maciço da Etiópia – vasto planalto que forma autêntica fortaleza natural – surgiram reinos prósperos e afamados, relatados por egípcios, gregos, indianos, persas e romanos.
Por mais de 3.000 anos, este sítio da África Oriental abrigou o Reino Damot, de Aksum e da Abissínia Cristã. No Século XIX, forma-se nessa mesma região o Império da Etiópia.
A relevância da Etiópia justifica, aliás, inúmeras citações na Bíblia. Em Gênesis, o país é tido como uma das terras que compõem o Jardim do Éden, que recepcionou os primeiros humanos criados diretamente por Deus.
Mais adiante, o Livro de Reis discorre sobre a Rainha de Sabá, famosa soberana etíope que visitou o Rei Salomão. Por sinal, este majestoso país é um dos mais citados nas sagradas escrituras: setenta e sete vezes para ser mais exato.
Desde a mais remota antiguidade as terras altas da Etiópia – recanto exuberante banhado pelas nascentes do rio Nilo – presenciaram ostensiva colonização humana.
No parecer do eminente pesquisador russo Nikolai Vavilov, a área é um dos sete centros mundiais de origem de animais domesticados e de plantas cultivadas, neste último caso, selecionadas a partir de ancestrais silvestres, difusos nessa parte da África.
Daí que hoje nos deliciamos – quase sempre sem saber – com alimentos etíopes. Dentre outras dádivas, a Abissínia presenteou generosamente o mundo com o quiabo, o café, o agrião, o gergelim, mamona, teff, feijão-fradinho, sorgo, milhete, cevada, fava, tremoço e muitas variedades de trigo. Também da Etiópia chegou-nos o gato, a cerveja, regras de civilidade, de bom gosto e de etiqueta.
Para completar, a Etiópia foi o ambiente de vida do mais antigo hominídeo de que se tem notícia. Com mais de três milhões de anos, o esqueleto de Lucy, considerada ancestral de toda a Humanidade, foi descoberto em 1974 ao Norte do Rio Awash, que drena as cercanias de Adis-Abeba, metrópole que sedia o governo etíope.
Contudo, para além das maravilhas naturais e da majestade desse notável rincão africano, uma nota indispensável estaria endereçada ao espírito combatente e senso patriótico que caracteristicamente impregnou todos os segmentos da sociedade etíope.
Sabe-se que durante séculos a Abissínia foi cobiçada por potências estrangeiras. Contudo, aos invasores foram reservadas as mais duras provas. Profundos conhecedores do terreno e dispostos a qualquer sacrifício para expulsar agressores e intrusos, os etíopes, mesmo quando momentaneamente derrotados, jamais foram efetivamente subjugados.
Efetivamente, a Etiópia configura a mais bem sucedida experiência de independência nacional catalogada nos anais da história mundial.
Grosso modo, tais considerações se repetiram nos embates com o imperialismo europeu.
O Reino da Itália atirou-se a partir da unificação em 1870, na conquista colonial. No final do Século XIX, através de acertos com as demais potências européias, decidiu-se que a Etiópia integraria a esfera de influência italiana na África.
Certo é que os etíopes não haviam sido consultados se desejavam a tutela estrangeira. Tampouco se estavam convencidos em abrir mão da sua independência. E como ficou demonstrado, seu estado de espírito deixou absolutamente claro que não tinham qualquer propensão para isso.
Quanto à Itália, seu grande erro foi subestimar a capacidade de luta dos africanos. Pretendendo tomar posse do que havia sido previamente decretado como sua propriedade, foi organizado um exército invasor para submeter os etíopes ao mando europeu.
Porém, a Etiópia não se intimidou. Fazendo frente a poderoso esquema bélico italiano, o imperador Menelik II, apoiado por sua esposa, a imperatriz Taitu, convocou numeroso exército. Por todo o território do império soaram dia e noite os tambores da guerra. Não se teve notícia de desertores, medrosos e capitulacionistas. Isto porque esta tipologia de adjetivos não figurava no dicionário militar etíope.
E assim, em 1896 Menelik defronta-se com as hostes italianas em Adowa, às portas do amado planalto etíope.
Pois então, surpreendendo o mundo, após duros combates Menelik impõe memorável derrota aos agressores estrangeiros. Humilhados e fugindo apavorados diante do exército etíope, a retirada desordenada dos italianos se tornou objeto de assombro mundial. Esta vitória sem precedentes garantiu a independência do país. Foi o único na África que permaneceu livre da dominação colonialista.
Entretanto, a derrota frente ao que aos olhos europeus eram apenas bárbaros e selvagens, alimentou incontidos sentimentos de ódio e desejo de revanche. Em 1936, o ditador Benito Mussolini – o Duce – sentiu-se no papel de vingar a afronta imposta pelos selvagens. Sem hesitação, fabricou um pretexto e declarou guerra à Etiópia.
Procurando apagar o vexatório fracasso de Adowa, a Itália organizou um exército muito superior em soldados e em poder de fogo: 200 mil homens, 700 canhões e 150 tanques apoiados por dezenas de aviões de combate, bombardeios e logística moderna. Por via das dúvidas, armas químicas foram usadas sem maiores rodeios. Sem exceções e sem piedade.
A Etiópia, nação sem litoral, isolada, desarmada e sem aviação, não tinha condição de obter auxílio externo. Este por sinal sequer foi oferecido. Apenas voluntários e a diáspora negra correram em auxílio ao país.
Mas destemidamente os etíopes se postaram na defesa da pátria. Utilizando todas as opções à mão, obrigaram os invasores a disputar durante meses a conquista do terreno, palmo a palmo, centímetro por centímetro.
Todavia, a superioridade bélica dos invasores ocidentais e o uso criminoso de gás venenoso abriram caminho para a ocupação italiana.
Senhores do país e visando humilhar seu povo, os ocupantes encetaram o saque dos tesouros nacionais etíopes, levados sem demora para a Itália para serem exibidos como troféus de guerra.
Um desses, era a escultura dourada do Leão de Judá (Figura 1), emblema da monarquia etíope. Sumariamente arrancada de Adis-Abeba, meses após estava reinstalada como insígnia da vitória dos conquistadores, agora erguida em pleno centro de Roma. Um claro sinal da pretensão italiana em tornar-se senhora perpétua da Etiópia.
Não obstante, forjados na resistência a muitas invasões, a luta dos etíopes não cessou. Montando operações de guerrilha e ampla rede de sabotagem, a chama da resistência foi mantida acesa. Durante todo o período de ocupação – entre 1936 e 1941 – o povo etíope lutou sem tréguas contra a usurpação da independência nacional, atormentando incessantemente os ocupantes do país com ações de insurgência.
Neste contexto marcado pelo empenho em colocar ponto final na odiosa dominação estrangeira, Zerai Deres foi exemplo a toda prova dessa determinação (Figura 2). Sua vida, que poderia inspirar refinada produção cinematográfica, é celebrada nas atuais Etiópia e Eritréia como marco na luta de libertação do colonialismo ocidental.
Nascido no vilarejo de Hazega – hoje parte da República da Eritréia – Zerai foi convocado pela administração colonial italiana para participar dos festejos que em Roma, entronizavam o novo império de Mussolini.
A comemoração, programada para o ano de 1938, teve como uma das suas estrelas ninguém menos do que o ditador nazista Adolf Hitler. Convidado para visitar Roma, o líder nazista prestigiaria a parada da vitória sobre a barbárie lado a lado com Benito Mussolini e Vitório Emanuel, Rei da Itália.
A festividade pautava farto temário relativo às novas colônias africanas, incluindo Zerai Deres. O jovem foi instruído para marchar com outros membros do desfile carregando uma espada cerimonial com a qual deveria saudar o rei, o Fuhrer alemão e o Duce diante da tribuna de honra. Isto é: confirmar a capitulação da Etiópia.
Porém, nada saiu conforme programado.
Tão logo a escultura do Leão de Judá entrou no seu campo visual, um súbito sentimento de fúria tomou conta de Zerai. Uma reação nada surpreendente. Afinal, a imagem simbolizava a soberania à qual seus ancestrais haviam jurado lealdade eterna. Ver o Leão Coroado no coração de Roma foi intolerável. Zerai se deu conta de que não poderia prestar qualquer homenagem aos agressores da África.
Então prontamente levantou a espada que deveria certificar a submissão. Com ela, diante dos convidados, matou e feriu todos os soldados italianos postados a sua volta. Detido a duras penas, seu ato ofuscou as comemorações de Mussolini, que assim, foi recordado que a luta continuava, demonstrando também que a dominação européia não era fato consumado.
Zerai acabou tombando na Itália, muito longe do solo ancestral da África. Mas seu ato não foi esquecido.
Após a II Guerra Mundial, com a Etiópia novamente livre e soberana, o imperador Hailé Selassié insistiu na devolução do monumento. Esse apenas retornou ao país de origem em 1966, após exaustivas negociações com os relutantes italianos.
Contudo, a justiça venceu e o sagrado Leão de Judá retornou triunfante para a Etiópia. Reinstalado no sítio original, em discurso público Selassié saudou o feito de Zerai Deres, sua coragem e seu patriotismo.
A despeito de ser um símbolo monárquico, o monumento não foi desmontado pelo regime militar que em 1974, implantou a república etíope. A memória de Zerai falou mais alto do que qualquer outro tipo de vínculo que a imagem poderia suscitar.
Hoje, Adis-Abeba é não só a capital de uma dinâmica nação soberana como também, sede da União Africana. A independência, que no início do século XX era exceção num continente gravado pelo colonialismo, atualmente é condição vivida por dezenas de países.
Celebra-se em 25 de Maio o Dia da África.
É uma data que recorda a luta dos povos africanos por sua dignidade e independência. E como todo processo representativo de tomada de consciência, certamente ela não aconteceu no vazio.
De fato, para sua irrupção concorreram as representações coletivas. Estas, refletindo anseios profundos, tornaram impossível a supressão da identidade dos seus povos e culturas.
Foi essa a força – que em linhas gerais associamos ao conceito de Africanidade – que fez Zerai Deres emergir do anonimato e desafiar os opressores do seu povo.
Uma clara demonstração da importância de que se reveste em África a memória ancestral, matriz da resistência e da intenção em construir sua própria história, seus caminhos e suas vontades.
Zerais Deres morreu ao defender o Leão Coroado. Mas justamente desta forma é que Zerai continua vivo.
Memória de África, Memória de Zerais Deres.
Memória eterna da África!
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MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, coordenador editorial, professor universitário, antropólogo e pesquisador africanista. Tem graduação em Sociologia (USP, 1982), Mestrado em Antropologia (USP, 1997), Doutorado em Geografia (USP, 2006), Pós Doutorado em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutorado em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutorado em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015). Waldman atuou como consultor internacional da Câmara de Comércio Afro-Brasileira e professor nos Cursos de Difusão Cultural do Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP). É colaborador do Jornal Cultura (de Luanda) e atuou como articulista na revista Brasil-Angola Magazine (São Paulo). Autor de dezenas de textos centrados no temário de África e Africanidades, é co-autor de Memória D’África: A temática africana em sala de aula (Cortez, 2007), obra de referência no campo africanista.
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Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br;
Currículo Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474;
Verbete Wikipédia english edition: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman.
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