TEATRO:
“A FUZARCA DOS DESCALÇOS”
Você entra no teatro, como espectador atento à cada detalhe de um novo espetáculo que irá assistir, e é surpreendido com um pedido de que retire seus calçados e deixe-os sobre o palco, onde encontram-se os atores e músicos já à postos. Esse é o primeiro impacto do início do espetáculo “A Fuzarca dos Descalços”.
Ficamos esperando o momento chave, no qual os calçados serão usados para revelar um paralelo ou uma metáfora relevante à montagem baseada no texto de Beckett; E esperamos também quando trechos de “Esperando Godot” serão citados, ou quando haverá um mote realizando um paralelo espetacular com “A Fuzarca”. E a maior surpresa encontra-se aí:
“A Fuzarca dos Descalços” utiliza de iscas metafóricas para fixar a atenção do público para o acontecimento seguinte, e seguinte e conseguinte. Notamos essa arquitetura na dramaturgia, onde à cada ato há uma “evolução” e “alteração” na rota da personagem, que tenta galgar um caminho em busca de respostas além do muro.
Quem vai ao teatro esperando ir de encontro à uma versão de Beckett, acaba descobrindo que foi, na verdade, de encontro à uma montagem que tem em Beckett somente um ponto de partida e pinceladas em sua estrutura.
O que importa mesmo nessa encenação do “Coletivo dos Anjos” é utilizar e colocar em pauta um “lugar / estado de ser comum” vividos pelos personagens e divididos com a realidade da população negra mundial.
O jogo de cena é construído sobre cenário quase minimalista, com referências à uma trincheira num campo minado pós-guerra, no qual a peça acontece, sem efeitos, sem pirotecnias, mas com um embate de ideias que revela os desgostos e desajustes sociais que ainda vive a população negra, em busca de um lugar que lhe é negado.
O texto contundente sem deixar de ser entretenimento de Victor Novoa, na boca do elenco enxuto (Eder dos Anjos e Salloma Salomão), passa por muitos pontos reconhecidos pelo público negro que comparece ao teatro. São realizados questionamentos comuns a quem sofre de desigualdade racial desde sempre e feitos da melhor forma, revelando também, assim como em Beckett, uma espera por mudanças, com a diferença de que aqui não se pode esperar.
O espetáculo não aconteceria de verdade de forma tão fluente e significativa, trazendo a margem todos os questionamentos necessários, se não estivesse no corpo e na fala de um elenco refinadamente preparado. É nítido o estudo e o controle de cena necessários para que o espetáculo aconteça. Uma batuta que se encontra nas mãos dos atores. Eder dos Anjos que é ator, idealizador, conceptor e diretor geral, traz uma interpretação complexa como um patchwork (como deve ser) e agridoce, repleta de frescor, inocência e ao mesmo tempo uma dor do personagem que as vezes desagua. Salloma Salomão faz o contraponto, com um personagem mais experiente e com menos urgência.
Diante desse jogo bem feito, a direção de Aysha Nascimento é precisamente invisível e generosa, construindo um palco para a melhor ação / atuação. Tudo moldurado com uma trilha sonora que assim como toda a “Fuzarca” sai do óbvio ou clichê de espetáculos que abordam a temática: uma viagem entre estilos e épocas da música negra mundial, nos lembrando do quanto a cultura e presença negra está presente , penetrando mesmo que indiretamente (como acordes musicais) toda e qualquer cerca ou muro.
“A Fuzarca dos Descalços” é aquele tipo de programa imperdível, que nos diverte, nos aquece, nos faz pensar e nos torna melhor. Feita com o que o teatro precisa: ator, texto e pés descalços plantados no chão.
Cotação: excelente
Se você ainda não assistiu, assista. O espetáculo faz um circuito pelos teatros da prefeitura de São Paulo.
Confira a programação:
Teatro Cacilda Becker – Dias 14 e 15 de fevereiro
Teatro Alfredo Mesquita – Dias 24 e 25 de fevereiro
Centro Cultural São Paulo – De 21 a 31 de março
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