MÃE PRETA – FILHA PRETA
E uma coletânea de contos escritos por pretas falando da maternidade vivenciada, vista e revista por todos os possíveis lados. São dezessete escritoras negras que fazem narrativas vivas de seus olhares.
Neste mês apresentaremos quatro (4) e tem mais tão potente quanto.
Tão emocionante quanto.
Tão preta quantos
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Boa Leitura
TURVOS CAMINHOS por Luana Levy
Ao caminhar na praça com sua mãe, Ana não parava de imaginar como seria bom ter sido criada por aquela mulher que teve a sorte de encontrar depois dos 30 anos.
Linda, sempre foi uma mulher forte, disciplinada e enérgica! Dessas mães que projetam um futuro melhor, através da educação e da disciplina. Para ela não era comum comemorar as boas notas, as tarefas cumpridas, as tentativas e os erros, segundo ela os filhos não faziam mais do que a obrigação.
Com este pensamento organizou a rotina da casa e das crianças. Sempre apoiada por muitas regras e pouca interlocução. Mãe, divorciada com redes de apoio singulares e distante das dinâmicas do cotidiano, pensava que só assim era possível afastar os filhos de influências negativas enquanto trabalhava as quarenta horas semanais, e por vezes algumas horas extras. A missão de criar dois filhos traziam medos e inseguranças sempre ditas por Linda:
— Se vocês virarem bandidos, drogados, alcoólatras, ou a Ana engravidar na adolescência, vocês acham que vão cobrar de quem? De mim ou do pai de vocês? Se ficar tudo bem, os parabéns vão para os dois, independente do esforço envolvido.
E de tanto contar só com ela, e preocupar-se com esses fantasmas Linda encontrou na rigidez e no controle a solução para lidar com tudo. Para ela, só sua opinião bastava, sem muito espaço para negociação. Sabe daquelas mães que dizem eu disse não, e não interessa quem venha interceder que a resposta será a mesma?
Ana sempre admirou sua mãe, achava que ela era uma heroína para dar conta de nunca se atrasar, não adoecer, cuidar dos filhos, da casa, e sentia-se na obrigação de querer fazer sua parte agradando a mãe. Ela tentava seguir tudo que a mãe combinava, mas no auge da maturidade de seus 8 anos se emaranhava entre as obrigações, o lúdico, o brincar, assistir tv e fazer lição de casa. Sempre tentado, sempre enrolada, o que trazia enfrentamentos constantes entre mãe e filha.
Ana questionava com frequência o porquê não era como o irmão. Imaginava ser mais fácil ser como ele e descumprir a regra de não brincar na rua, voltar faltando poucos minutos da mãe chegar, lavar a louça e fingir que estava em casa em casa a tarde toda.
— Pena que não consigo mentir! Era só chegar da escola, almoçar e ficar na rua. Quem sabe assim a casa ficaria arrumada, e não repleta de bagunça? Quem sabe se eu fingir ouvir, e só fazer de conta que concordo não entro mais em conflito com minha mãe?
Mas quem disse que Ana conseguia desobedecer às regras, e ser pela metade? Ela preferia negociar, ouvir, argumentar e apostar na relação. Mas isso não funcionava. Pelo menos, não naquele momento!
A mãe focada em preparar e orientar, alertava a filha para as dificuldades afirmando que a trajetória seria de muitas lutas:
— Filha, você tem que se esforçar, e estudar muito, não dá para gente não se qualificar! Para nós a vida é três vezes mais difícil, somos pretas, mulheres e pobres!
Com o tempo, Ana descobriu que sua mãe estava certa. Tão certa que sentia o racismo estrutural sobre si ao ir aos médicos do convênio ou outro espaço em que a presença preta incomoda. Ana demorou a entender, mas a companhia da mãe preta de tom de pele claro vista muitas vezes como branca, diminuía as tratativas racistas de suas caminhadas e ao adolescer e andar só, sentiu mais forte a porrada do descaso, dos olhares negativos, dos questionamentos.
Porradas que só aumentaram quando Ana mudou de vida e de cidade para estudar. Universidade pública, ela sem malícia nenhuma do que era vida acadêmica, nem sobre as ramificações do racismo estrutural. Conexões não encontradas, falta de intimidade, enfrentamentos a livre docentes racistas cheios de argumentos e nenhuma escuta. Saber que tem que ser três vezes melhor já era sabido, mas como diante de uma configuração tão injusta? Nem todo cuidado recebido poderia dimensionar esses desafios.
Linda acompanhou de longe o sofrimento da filha, mas teve que lidar com sua porrada pessoal. O que colocar no lugar do convívio com a filha, que agora estava tão longe e tentando caminhar com as próprias pernas? Como dizer da falta que essa relação fazia quando de perto parecia tão negativa e conflituosa? Como aprender a estar presente respeitando essas diferenças de comportamentos mantendo todo amor, verdade, respeito e trocas entre elas?
Para Ana entender que todo excesso ou discordância veio de alguém que recebeu menos do que deu e fez questão de estar presente oferecendo todo seu melhor, ajudou a cicatrizar antigas feridas. Para Linda a coragem de se revisitar, amolecer e parar de ter razão facilitou novas conexões inimagináveis, como a fuga para a praça para conversar, ver o sol, ouvir músicas em pleno almoço familiar estressante. Para nenhuma das duas faz mais sentido, gritos, discussões, as conexões, elas que valem!
Caminhada: Luana Levy, Mulher preta, periférica, militante, professora, pretagoga, escritora, contadora de história e brincante. Na busca de entender a si, decidiu ser muitas coisas, aventurando-se em jornadas e possibilidades. Para isso se impôs uma única regra, paixão. Finalista do Prêmio Jabuti de 2022 – Categoria Contos com PRETOS EM CONTOS – Volume 2
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