A Mágica Festa da Irmandade da Boa Morte na Bahia
Texto de Lenny Blue – dezembro de 2017 – fotos de Lenny Blue e Krika Mattos
O Recôncavo, Procissão
A imagem vai seguindo
Entre casarões dourado-desbotados
E os milagres
(Pecados?)
Vão ficando no caminho
Como num quadro de Rony Bonn
Carine Araújo
A paisagem, tal qual filme do oeste americano surge como ‘um presente’. As favelas da zona metropolitana de Salvador desaparecem e surgem colinas, plantações de bambu, palmeiras e eucaliptos, abençoados por nuvens brancas no céu azul de brigadeiro.
Ao redor das colinas, estrada com ambulantes e suas bananas e doces típicos; deliciosas tavernas quase primitivas e velhas roças ao fundo .
E… não mais que de repente, surge um arco contra o céu, anunciando “Cachoeira Heroica e Monumento Nacional”, tão bela que proclamada foi Patrimônio Imaterial desde 2010.
Imponente e bucólica Cachoeira (1)…heroica pela participação nas lutas da independência, histórica pelo patrimônio, praças, igrejas, casario barroco, fachadas coloridas desembocando no mágico Rio Paraguaçu.
Um de seus encantos é a mágica e majestosa Ponte D. Pedro II, ponto de união com a vizinha São Felix. Corta o Rio Paraguaçu, com suas colunas de ferro vazadas e dispostas em X; dormentes soltos onde repousam os trilhos, que impacientes vibram ao menor sinal de veículo , tremendo e emitindo sons com a passagem imponente dos trens…talvez para assombrar forasteiros desprevenidos, quem o sabe?
E como renda fina estirada sobre o Paraguaçu, parece abrigar o sobrenatural , inspira o amor.
No entardecer dourado, o caudaloso e largo Rio, nos encanta enchendo olhos,corações, aquietando a alma.
Casas encravadas com luzes coloridas e reluzentes aos pés do imponente Mirante, imagens surgem no seu leito espelho d’água. Torres de igreja e casas à margem lembram cenário de postal, onde a vida passa devagar, tão malemolente quanto o sotaque baiano.
E em todo agosto, Cachoeira floresce para celebrar a Nossa Sra. Boa Morte, manifestação que representa a ancestralidade dos povos africanos e libertos do Recôncavo.
Em rituais ancestrais, surge a Irmandade da Boa Morte, ‘primeira organização feminista negra’, que em dialogo multi religioso, organização, luta e resistência , preserva os valores e tradições africanas.
Outrora, o movimento surgiu das mobilizações das Guerreiras Irmãs, que se aproximaram da Igreja, construindo uma identidade afro católica e fundando uma Irmandade com o empenho de alforriar negros escravizados e fugidios.
Para preservar sua identidade e fugir de árduos castigos e punições impostos pela Igreja; irmãs , mães e esposas dos escravos fugidos, rogavam a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte, pelo fim da escravidão e sofrimentos.
Espírito de luta também exercido por Maria Quitéria, brava Guerreira, que como’soldado’ Medeiros’ envergando vestes masculinas, lutou bravamente junto com os voluntários do príncipe d. Pedro, ganhando a insígnia de Cavaleiro Imperial da Ordem do Cruzeiro.
Permeadas de fé e celebrando a ‘boa vida, as celebrações litúrgicas e sincréticas da Nossa Sra. da Boa Morte duram três dias em datas móveis.
Nesse ano, no primeiro dia, após procissão levando o corpo de N. Sra. Boa Morte pelas ruas da cidade, a liturgia na Capela citou a luta e resistência da mulher enaltecendo a busca da força interior e fé, para uma ‘boa vida’ e ‘boa morte. Na missa pelas irmãs falecidas entre cantos e orações, (…’nos céus com a minha mãe estarei…”) foi salientado que devemos dar ‘boa morte’ também, ao que não mais nos pertence e ao que nos oprime.
No segundo dia , “dormição” de N. Sra.” na missa de corpo presente, a prece ecoa na alma…. ‘É teu também nosso coração. Aceita, Senhor a nossa oferta, que será depois, na certa, o teu próprio ser’. Ao final do mantra sagrado , em passos silenciosos como prece, a multidão percorreu ruas da cidade guiadas á luz das velas carregadas pelo séquito da Irmandade.
Encerrando as celebrações sagradas, no terceiro dia, dedicado à Assunção de Nossa Senhora de Glória, após a alvorada, a igreja Matriz ficou em festa.
Inundada pela egrégora de luz, esperança e gratidão, e na ‘fé no que virá’ a multidão após a missa , percorreu as ruas da cidade louvando Nossa Senhora , sob o rufar da centenária e garbosa Filarmônica Minervina Cachoeirana.
Quiçá na passagem, o mimo de um leve toque no andor da Santa , captando com a fé e mãos bênçãos para o porvir…
Á frente seguem as Irmãs Guardiãs do caminhar (2)’ onde cada esquina recorda e abriga silenciosa, lutas, memórias embaladas pelo vento, em cantos torsos de oitizeiros do Faquir.’
E ao final do dia, a Irmandade vestida de ‘roupa de baiana” (3) celebrando triunfantes , abrem o samba de roda no alto da Capela da Ajuda e tal qual como nos versos da poetisa santamarense Mabel Veloso…(4)” dançando e cantando como aos vinte anos e….não nos deixando lembrar que fizeram oitenta”.
São pueris os Sagrados encantos de Cachoeira… nos deixam em perene Estado de Graça.
E entre tantos outros encantos…ouso ‘dicar’ : que contemplar o Mestre Rio Paraguaçu ao som do silêncio interno, abstraindo no sábio vai e vem das águas – nos aproxima da humildade pura e simplesmente…e .nos faz refletir sobre a fé.
Peregrinar sutilmente com passos leves como prece, que se tornam humildes em árduas ladeiras e caminhos quase sempre tortuosos – nos preenche com a concretude do pertencimento .
E, ao entoar coletivamente os cânticos – linguagem de fé e esperança; lá vai o espírito aos céus, intensidade da gratidão pela Encantada Egrégora – eis os Sagrados Encantos de Cachoeira!
Voltarei, na fé!
Lenny Blue de Oliveira
Ativista ‘Jurássika” Negra, Advogada, Colunista Mensal do “Jornal Centro Em Foco, facilitadora de Tai Chi Pai Lin – UBS – República
1 – Cachoeira proclamou D. Pedro como regente do Brasil,um marco na libertação do jugo português. O povo combatente e negro de Cachoeira rechaçou às pretensões portuguesas em submeter o povo baiano, e impôs derrota à barca lusitana, proclamando D. Pedro como Príncipe Regente , dois meses antes do grito de Ipiranga, momento embrião na libertação do jugo português.
2 -Oitizeiros do Faquir. Menção ás lendárias arvores da Praça do Faquir, próxima à orla de Cachoeira. .Edmar Ferreira, Poeta e escritor o poema Segredos de Agosto (para a Irmandade)
3 – (bata branca, saia colorida, turbante e pano da costa)
4 – Veloso, Mabel – Pedras de Seixo, 1980, p.136.
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