O Relato de três mulheres
Autoras: Antonia Caetano Pinto, Magda Isabel Nascimento, Elisabete Aparecida Pinto
Cena 1- Relato de Antonia de Caetano Pinto
Mas vou te mostrar com quantos paus se faz um perfume de preto.
Aconteceu em 1953, eu ainda era solteira trabalhava na Fiação Amparo e também como empregada doméstica. Eu morava na rua Washington Luís no centro da cidade de Amparo. Saiamos as 10h00 da noite da Fábrica, voltávamos para casa numa turma de colegas, passávamos pelo Largo do Rosário que tinha um banheiro público que cheirava muito mal.
Certa noite uma das colegas disse ao passar perto do banheiro:
_____ Olha que privada fedida! Parece perfume de negro.
Eu virei para traz, pois iria bater nela naquela mesma hora. Iria mostrar para ela como se faz perfume de negro, mas não bati, pois estava vindo um homem muito bom e eu achei que ele não merecia ver essa cena.
No outro dia eu a avisei na fábrica:
_____Olhe hoje você vai apanhar.
Na saída, e em frente onde era o Feltro Brasil eu peguei ela e derrubei-a no chão. As irmãs dela foram embora deixando ela sozinha comigo. Quem veio tentar apartar a briga foi um moço que não tinha perna. Esqueci o nome dele. Dei um empurrão nele, caiu sentado. Continuei batendo. Quebrei o dente e os óculos dela.
Ela me disse:
_____Você vai ter que pagar os meus óculos.
Não paguei nem os óculos, nem os dentes.
As irmãs dela disseram para ela:
_____ Bem feito! Quem mandou você ficar mexendo com os outros.
A mãe dela também falou:
______ A Antonia é uma pessoa boa. Você não devia fazer esse desaforo para ela. Ela vem chamar vocês todos os dias. Se não fosse a Antonia no turno da manhã, vocês perderiam hora.
O gerente da fábrica veio me questionar:
_____ A senhora andou batendo na fulana
Eu disse:
___Bati porque ela mereceu. Outra coisa eu não bati nela aqui dentro da fábrica. Bati nela na rua, bem longe daqui.
Cena 2- Relato de Magda Isabel Nascimento
Mau cheiro de negra ou as glândulas sudoríparas écrinas alteradas
Sempre tive episódios “estranhos” em minha vida, prefiro adotar essa palavra levando em conta o pensamento de Bauman no texto de Camozzato, ou seja, “aqueles seres que não possuem saberes sobre si, (…) esse “diferente” é corporificado numa variedade de “tipos” humanos que causam estranheza e insegurança, afirmação e fixação identitária.
É a diferença que incomoda pela sua ambiguidade, pela sua condição de ser palpável – embora não palatável – e, portanto, capaz de
se espalhar em nós/por nós. A diferença, encarnada nos “diferentes”, é o que nos ronda, o que se torna uma ameaça constante “1.
Certa vez, quando trabalhava como monitora de exposição de Artes em um Centro Cultural renomado na cidade de São Paulo, fui chamada por minha coordenadora para uma conversa. Pensei cá comigo: fiz algo errado, vou levar bronca. Mas em tom de aconselhamento ela disse-me:
____ Ontem, fui procurada por um senhor que me disse que você tem mau hálito.
Na hora pensei que, poderia ter maus hábitos! Assim, levantei-me e falei o que pensava dessa “estranha conversa” argumentei sobre outro colega branco, que chegava suado e sem comer de outro trabalho, com um mau hálito dos infernos diretamente para a monitoria, e ela me disse que tinham reclamado de mim, logo eu mulher negra que sempre conversava com o público e estava exposta numa vitrine. Sem nenhuma cisma! Recorri ao meu dentista de infância, para tirar algumas dúvidas, ele me acalentou, pois sempre cuidou de meus dentes: – Você nunca teve mau hálito, esqueça isso! Deve ter sido um daqueles dias em que você não se alimentou direito.
Lembrei-me que meu horário era das 11h às 19h, com uma pequena pausa para o lanche, às vezes tinha que atender alunos e público que chegavam ininterruptamente sem espaços até para um gole de água.
Depois de algum tempo, quando já tinha me apaziguado com meu hálito, estava trabalhando como professora em uma instituição educacional sentia que ali era o emprego ideal. Gostava muito do trabalho e dos meus alunos, fazia projetos e pesquisava novas metodologias para a sala de aula, entre outras atividades. Estava feliz, até que um belo dia uma colega negra, me chamou e disse-me que precisava falar algo: logo pensei, vai falar do meu trabalho, dos alunos, pois os mesmos são jovens e, portanto, não sossegam, devem ter aprontado alguma arte na biblioteca ou corredores. Mas nada disso: Ela me disse, que todos comentavam na unidade que eu era fedida, não
cheirava bem na instituição. Novamente o estranhamento de não ser nada profissional e sim estritamente higiênico, de pureza, de uniformidade, questões relacionadas ao biopoder.
Calei, mas lembro-me que nessa noite foi difícil para mim. Pensava no que fazer, visto que recebi a notícia no final do expediente. No dia seguinte, falei com a coordenação sobre o assunto, que por sua vez levou para a direção. Fui chamada por uma mulher branca que estava assumindo a direção fazia poucos meses. Pensei comigo, ela vai entender o meu caso.
Assim, que relatei o ocorrido, ela perguntou-me, o que eu queria fazer. Eu disse que no momento não poderia fazer nada, visto ser uma situação onde não tinha nomes, apenas uma história que me foi relatada. Ela muito educadamente, perguntou minha idade. Ao dizer, ela então disse ser fato normal nessa fase, visto que nossos hormônios se alteram trazendo odores diferentes. No caso dela, a sobrinha sempre reclamava que ela tinha chulé ao tirar o sapato na sala, e ainda relatou outro fato na unidade educacional de onde ela vinha, no qual elas compravam perfumes e sabonetes, para uma moça, pois descobriram que a mesma não tinha condições financeiras e não tinha um odor satisfatório. Passado alguns meses, com a crise político financeira plantada no país, fui demitida. Pois não cabiam “certos estranhamentos” nessa unidade educacional e era preciso higienizar, criar fronteiras que separassem os cheiros, dessa maneira exclui-se o perigo de contaminação.
Novamente em Bauman citado no texto de Camozzato, “A incessante busca pela efetivação desses ideais modernos, portanto, contribui para a criação de uma sociedade que, buscando um mundo linear, puro e ordenado, constrói o “outro” e, nesse mesmo movimento, muitas vezes, visa banir esse “outro” que passa a ser considerado a “sujeira” destoante”.
Lembro-me que na época ao ocorrido busquei uma literatura que falasse desse odor específico outorgado aos “diferentes na sociedade” e deparei-me com um estudo de dermatologia para a pele negra que diz o seguinte: “As glândulas sudoríparas écrinas existem em número
aproximadamente igual nos indivíduos negros e nos brancos (Johnson, Landon, 1965), embora se verifique maior sudorese nos brancos (McCance, Purohit, 1969). A pele negra absorve maior quantidade de calor, mas parece possuir maior resistência à temperatura elevada. A relação entre a pigmentação cutânea e a intensidade da sudorese ainda não está esclarecida. As glândulas apócrinas são maiores e em número maior na pele negra, além de produzirem maior quantidade de secreção (Hurley, Shelley, 1960). Isso não explica a diferença no odor, pois este depende da colonização bacteriana”.
Quero pensar que o Sudor anglicus permanece ainda nos dias atuais, nas sociedades tropicais subdesenvolvidas, no qual percebe-se que a morte do outro, a sua exclusão e seu anonimato, deixa a vida mais perfumada e sadia.
Dedico essas palavras para a Dona Antonia e outras tantas mulheres negras que socaram sem dó os racistas.
[1] CAMOZZATO, Viviane Castro . O corpo nas atualizações do racismo contemporâneo. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 41, p. 165-180, jul./set. 2011. Editora UFPR, p.170.
Cena 3- Elisabete Aparecida Pinto –
Catinga = cheiro de negro
Cheiro desagradável de pele de negro. Definição de catinga descrita no glossário do livro de comunicação e expressão da 5º serie, adotado pela professora de português em 1975. Os dicionários reproduziam também este conteúdo desumanamente racista, a saber: cheiro desagradável, geralmente associado à pele de negros. Transpiração malcheirosa.
Também como variante da palavra caatinga, reporta-se à botânica com as seguintes definições: mata de árvores enfezadas, nome de várias plantas.
Lembro de um colega de sala rindo com escárnio. As crianças não são boas. Se nascem boas, não sei. Só sei que com certeza aquele menino estava aprendendo a ser cruel e a desmerecer outras pessoas consideradas como diferentes. Talvez tenha se ancorado nas mensagens diretas, semelhantes à exposta na figura acima ou nas mensagens embutidas implicitamente nos textos e contextos do espaço escolar e/ou familiar.
Ele me olhava e ria como quem informa: está vendo eu sou melhor. Você é naturalmente fedida. Sinceramente, hoje, posso comparar o sarcasmo desse menino com a zombaria de William Waack e o riso insultante e dissimulado de Sotero.
A professora era uma pessoa verdadeiramente bela e educada, entretanto, não sabia intervir nessas questões. Ela ficou séria e paralisada.
Eu, não pude fazer como a minha mãe. Aos 10 anos eu me calei. Aquele menino ria maldosamente, mas estava escrito no livro. A ciência e os livros não mentem! ?
Era ALMA DE FLORES da MEMPHIS. Não era perfume francês.
Num outro momento da minha vida, nos idos dos anos 1993 a 1994 trabalhava em Geledés- Instituto da Mulher Negra. À época Geledés funcionava no bairro da Liberdade em um prédio tomado por escritórios de advogados. Havia uma senhora – advogada – muito simpática que admirava a existência de Geledés. Acreditava ser um projeto, extremamente, necessário. Assim, mitificar as mulheres negras que ali trabalhavam era apenas uma conseqüência, particularmente, me achava elegante e supervaloriza as minhas vestes. Certa vez entramos no elevador juntas e eu usava almas de flores, uma colônia de aroma suave que circula no mercado brasileiro desde dos 1950. Na verdade, essa colônia clássica me trazia lembranças do passado ganhávamos de presente de natal de minha tia. Foi muito engraçado. Esta senhora muito delicadamente me pergunta:
____Que perfume você leva? Ele é maravilhoso, é francês? Adorei
Respondi:
_____É alma de flores. Não é francês.
Era perfume francês não era perfume barato
Já em 2004 eu trabalhava na Secretaria Municipal de Saúde e uma colega me chama reservadamente e me pergunta brava.
______Que perfume é esse que você usa? Onde você comprou? Ele me dá dor de cabeça.
Ela talvez pudesse ter dor de cabeça com o meu perfume e até poderia eu deixar de usá-lo para não molestá-la. Todavia, o que me impressionou e me chateou um pouco foi o fato de ela haver sugerido que meu perfume era barato. Tão barato que poderia lhe dar dor de cabeça. O perfume que estava usando era Chloe um Eau De Toillete. Bem esse era francês.
Amarrando as histórias na recorrência do racismo
Parece que o racismo e concomitante a sua negação estão no ar que respiramos. É no contexto da socialização primárias e secundárias que aprendemos sobre o racismo o quanto somos melhores e ou piores que o outro, bem como aprendemos a escondê-los. Althusser (1918-1990) chamou de aparelhos ideológicos de Estado as instituições como a escola, a família, os meios de comunicação de massa e os partidos políticos, pelas quais o Estado transmite a ideologia e exerce a violência simbólica.
Assim, […] a não representação de personagens negros na sociedade descrita nos livros; a representação do negro em situação inferior à do branco; o tratamento da personagem negra com postura de desprezo; a visão do negro como alguém digno de piedade; o enfoque da raça branca como sendo a mais bela e a de mais poderosa inteligência (ROSEMBERG, 2003, p. 133), até certo momento de nossa história foram naturalizadas.
Já sociólogos franceses Pierre Bourdieau e Jean-Claude Passeron, afirmam ser a escola um instrumento da violência simbólica, por reproduzir os privilégios existentes na sociedade. Esses sociólogos chamados de crítico-reprodutivistas, desmitificam a ilusão de que a escola seja um meio de democratização pelo qual se daria a ascensão social.
A violência simbólica se dá através da doutrina, impondo valores e dobrando principalmente as crianças para a obediência. No mundo adulto ocorre pela manipulação ideológica que obriga a adesão sem criticas das consciências e das vontades, de modo que o individuo acredite estar pensando e agindo por sua própria intenção.
Todavia, tanto a escola como as demais instituições da sociedade, bem como as pessoas individualmente ou coletivamente não são de todo passivas e podem subverter as situações de dominação, para tanto, precisam estar atentas às forças sutis de violência simbólica que sobre elas atuam, a fim de agir contra as mesmas.
Neste contexto, na década dos anos de 1980 Ana Célia da Silva[1] e Manuel de Almeida Cruz começaram a pesquisar temas referentes ao negro na educação, dando ênfase aos livros didáticos, possibilitando o surgimento de novas pesquisas e intervenções concretas no sistema educacional.
Outro aspecto importante e recorrente nas três histórias é a proximidade dos agressores com suas vítimas. Eram pessoas próximas regadas pela soberba. A soberba é perigosa porque torna a pessoa insensível e insensata. O soberbo se torna egoísta e põe seus próprios interesses acima das pessoas que considera “inferiores”. Desta forma, o soberbo acredita valer mais que outras; gosta, sobretudo, de mostrar que é melhor que as outras pessoas, também, são covardes, pois promove a humilhação de quem entende como inferior.
Passei ultimamente a pensar na relação entre racismo, soberba e inveja. Foi assim que identifiquei a inveja e a soberba nas práticas nazistas.
Na história de Antonia foi a amiga que talvez não tolerasse a ideia de ver uma mulher negra tendo o mesmo status e qualidades reconhecidas, naquela Amparo racista que, ainda, em 1953 preservava a segregação espacial entre negros e brancos.
A forma encontrada para humilhá-la foi a de rebaixar todo o seu grupo racial de pertencimento, comparando o mau cheiro do banheiro público, não com o cheiro, mas sim com o perfume; sugerindo, ainda, um mau gosto para aquisição de colônias, perfumes e desodorantes de qualidades. Entre o cheiro e o perfume, marca-se a impossibilidade de negros terem refinamento e poder econômico para a adquirição de produtos de beleza de qualidades. Tal pensamento repete-se no comportamento da minha colega de trabalho em 2004, a partir de uma história ocorrida há 41 anos atrás.
Talvez a minha colega de trabalho se incomodasse com o fato de não corroborar em mim o cheiro ruim. Não certificar em mim a catinga de preto, que ela ouvira repetidamente em seu processo socializador. Assim, confundiu o Chloé com um perfume barato, pois ainda, que eu tivesse doutorado e ela não, ainda que tivesse livros escritos e ela não; ela jamais poderia reconhecer que o cheiro marcante que eu carregava no corpo pudesse ser algo refinado. Pudesse ser um perfume francês. Por ser negra eu deveria carregar um perfume de preto
Antonia, hoje, com 84 anos em suas visitas periódicas aos consultórios médicos, ressalta-se nos a recorrência das mesmas falas: nossa como ela é bem cuidada. Logo em seguida os corpos das pessoas curvam-se para cheirá-la. Que perfume! Surpresos talvez por ela não levar um perfume barato. Surpresos talvez por ela não carregar em si um perfume ou comportamento de preto.
Já a Magda Isabel sofreu mais do que todas nós: perdeu emprego. Seus próximos eram tão soberbos que jamais reconheceriam em si algum erro. Elas sabiam do seu racismo, de sua soberba e do medo mais intimo; isto é, que aquela negra, a única com um mestrado na equipe pudesse assumir um cargo, e se tornasse chefe daqueles brancos ou quase brancos cheirosos. A estratégia era encontrar um ponto desqualificador: ela é fedida. A fama se espalha em um silêncio constrangedor, num particular devastador arquitetado por todos que tiveram despertados o seu ódio, com toda a negatividade que este sentimento carrega, entre eles: a inveja.
Devemos ficar atentos, pois o objetivo é desestabilizar as estruturas psíquicas e emocionais, assim perdemos o rumo da história. Talvez a estratégia utilizada por Magda não tivesse sido a melhor, mas diante da complexidade institucional e da sutileza do racismo; foi a melhor. Foi a possível. Antonia, bateu, bateu. Socou, socou. Quebrou os óculos e provocou a justa reparação e mantendo sua dignidade.
Todavia, o racismo não é somente atitudinal; é estrutural e no caso específico da definição de catinga, naquele livro didático, a justa reparação aconteceu a partir da ação coletiva de pesquisadores negros.
Para encerrar cito Nelson Mandela
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar. (…). A educação é o grande motor do desenvolvimento pessoal. É através dela que a filha de um camponês pode se tornar uma médica, que o filho de um mineiro pode se tornar o diretor da mina, que uma criança de peões de fazenda pode se tornar o presidente de um país.”
Volto aqui a minha história amorosa. De fato aquela senhora tinha alma de flores. Tinha tanto carinho por mim e por Geledés que ao me abraçar confunde uma colônia simples: ALMA DE FLORES da MEMPHIS com um perfume Frances. Que bom que possam existir pessoas que amam e sabem amar as pessoas. Que possam exalar o perfume do amor.
Bibliografia
SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: CEAO, CED, 1995.
______. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? [On-line] Available at: . Last accessed: 11 th December 2002: 8 p.
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