COMO SEMPRE A PAULA CHOROU
Feijão fradinho ficou de molho desde manhã. Meu pai chegou final da tarde Trocou de roupa e dividiu as tarefas. Paulo e Paula escolheriam o arroz. Eu poderia cortar em cubinhos a cebola, picar o alho e fatiar a salsinha e cebolinha. Depois lavar a salada. Enquanto ele temperava os bifes.
Viemos da África!
Qual delas? Não sei …
Teve uma vez que não dormi quando o meu pai contou a vida do Zumbi de Palmares.
Minha irmã chorou muito na hora que a Dandara se matou.
Triste pra caramba!!
Mas com certeza de um lugar que forjaram pessoas fortes, determinadas e que não se envergavam.
Viemos forçados, trancafiados, sequestrados para cá.
Imagine que a primeira de nós, que vou chamar de Paula, fazia parte de um povo que andava por essas Afrícas. Eram nômades, procuravam pelos melhores lugares para viver.
Paula toda cheia de si porque o nome estava na estória.
Ou seria História?
Todo mundo sabia que ela era o xodó do meu pai.
O Paulo era da minha mãe. E para mim sobrava a Tia Júnia e a Tia Edith, a primeira fazia um tempão que não aparecia e a segunda estava em Ribeirão Preto.
Paula, como todos ali, tinha a obrigação de cuidar dos menores, coletar a comida e caçar. Todos faziam de tudo.
Protegiam
Lutavam. Não por natureza mais para sobrevier.
Descem um morro
Somem outro morro
Andam
Descem um morro
Sobem outro morro
Andam
Descem um morro e o povo constrói suas casas bem perto de um rio, onde poderiam pescar, caçar e aliviar a sede.
Tempos tranquilos.
Tempos quentes.
Os últimos tempos felizes de Paula
Meu pai colocou o feijão fradinho no fogo. Panela de pressão e, como sempre, disse para a gente ficar longe, pois se acontecesse algo, estaríamos seguro. Verdade! A panela de pressão da Dona Assunta explodiu e fez um rombo enorme no teto dela. Fui ver: esbagaçou o fogão.
No meio da noite, pessoas estranham invadem as casas.
Gritos
Choros
Medo
Cheiro de morte levanta.
Paula leva os mais novos para longe dali. Para o alto onde poderiam ficar em segurança.
Temia aquele outro povo os pegassem para comer ou algo pior!
Paula retorna para o meio da luta.
Vem com medo.
Vem com raiva.
Vem com força.
Vem com desespero.
Combate com uma mulher que cuida dos seus.
Arremessa as lanças.
Atira pedras
Morde
Soca
Grita.
O jeito do meu pai de fazer o arroz era: Primeiro refogar a cebola e o alho até que estejam transparentes. Juntar o arroz, mexer até que fique: sequinho e brilhante. Depois juntar água: para cada xícara de arroz, duas de água fervida. Dosar no sal e nos outros temperos. Misturar bem. Abaixar o fogo e deixar cozinhar até o arroz secar. Pronto!
Batalha que vai até o amanhecer. O povo de Paula está sucumbindo, poucas e poucos se mantem em pé.
Paula ora pelos seus orixás. Pede.
Recebe: todas as fêmeas da terra, dos céus e do ar vem em auxílio do povo de Paula.
A luta retoma com força.
Mas o outro povo é muito mais numeroso.
Morte
Dor
Desespero.
Quebra o coração ver uma irmã morta
Correr não é covardia.
Correr é procurar outro lugar para lutar.
… E o feijão fradinho começou a ferver. Meu pai abaixou o fogo
O povo de Paula, percebe que era hora de fugir. Os que ainda estavam soltos correram do lado oposto que estavam os pequenos.
Forte.
Chorando.
Gritando.
Paula era uma das últimas. Queria ainda brigar. Porém tinha que pensar que sozinha não conseguiria e tudo ficou …
O dia escureceu. Uma eterna noite chegou.
Amarrada
Atada
Seus pés presos a pés de um outro. E este a outro. Fazendo uma longa fileira.
Andaram dias. Paula fica em silencio. Não fala, não chora e nem entende o que as pessoas dizem. Outros que estão atados falam que agora eles eram escravos. Paula pensa que não é! Paula sabe que não é!
De quando em quando vê de longe, alguém do seu povo. Mas não tem nada para dizer e nem quer perguntar.
Andam muito tempo. Sois e Luas
Comem pouco.
Vê alguns pés ficarem pelo caminho.
Houve choros.
Gritos
Paula não chora, mas quer, muito. Talvez o medo vá embora.
Andam muito tempo. Sois e Luas
Comem pouco.
Vê alguns pés ficarem pelo caminho.
Houve choros.
Gritos
Andam até que vê um rio muito grande. O maior que Paula já havia visto. Nem dá para ver a outra margem. Outros que estão atados chamam aquilo de mar. Paula chama de terror.
Colocam eles em uma casa de pedra. Também grande. Sem luz e com cheiros ruins.
Horror teve quando viu, pela primeira vez, uma pessoa diferente do seu povo e dos outros povos. Pessoa cheia de pelo no rosto, com a pele rosada e um olhar de desprezo.
Outros atados o chamaram de português. Paula chamou de ẹmi buburu branco. Um Espírito Ruim
Meu pai preparava o bife à milanesa conforme a receita de Tia Antônia: Numa tigela pequena, quebrava um ovo de cada vez e transfira para um prato fundo. Juntava a água e temperava com o alecrim, sal e pimenta calabresa seca. Batia com um garfo apenas para misturar as claras com as gemas. Num prato raso, colocava a farinha de rosca, em outro a farinha de trigo e temperava com uma pitada de sal. Empanava os bifes. Fritava com cuidados. Ficava igual!!
Paula, seu povo e os outros povos, são de pessoas fortes, orgulhosas e guerreiras. Mas aquela não-certeza do que viria, destruía toda à vontade. Moía o pensar. Preocupação só era poder viver o momento seguinte. Ficavam dispostos a fazer qualquer coisa para isso. Muita aflição!
Mais tempo ali e o que cresce somente é o medo. Tem hora que são levados para o sol. Para um banho. Para comer pouco. Algumas são abusadas. Triste.
…minha mãe chegou. Sorriu e a gente estava pregado na história do meu pai.
Foi boa a aula mãe?
Muitos awọn ẹmi buburu brancos. Orda de Espíritos Ruins!
Ela sabia que existiam, mas nunca tinha visto de perto. Falam outra língua que ela não entendia. Nem queria. Tinha pavor de olhar.
Um banho
Uma refeição.
E um ẹmi buburu, diz uma coisa que ela não entende, joga uma água na cabeça e fala: Paula.
É marcada e Paula sabe que não é escrava!
Depois constatou que esse seria o seu nome nesta outra vida.
Fila longa. Gritos. Queimam a pele da Paula com ferros quentes. Passam uma massa que esfria e alivia.
Andam
Andam
Marcha forçada até que entram em uma casa de madeira que estava em cima do rio grande. Outros atados chamaram aquilo de navio. E outros, mais chorosos, de túmulo. Paula não chamava de nada. Havia esquecido do rosto de seus irmãos. Porém sabe que não é escrava!
Andam
Gritaram
Chicoteiam.
Dentro, separam os homens das mulheres.
Paula fica junto com outras. Todas seguram o choro. Seguram o horror.
Seguram-se.
Passa tempo.
E o navio, o túmulo balança. Um dos ventres dos awọn ẹmi buburu.
Muito
Forte.
Passa tempo
Não balança mais.
De tempo em tempos uma das mulheres era arrastada para um outro lugar com os awọn ẹmi buburu. Depois ela retorna muito machucada e gritando. Ou machucada chorando. Ou machucada muda. Ou machucada e só. Paula sabe que não é escrava!
Um momento, Paula e os outros são levados para a parte de cima da casa.
Sol forte.
Vento bom
Tenta ver longe para encontrar uma terra. Só água.
Paula fica mais muda. Como era a voz da sua mãe?
Meu pai experimentou o feijão fradinho. Bom. Arroz solto. Bifes prontos e todos fomos lavar as mãos. Fala mais alto pai!!
Os awọn ẹmi buburu, separam alguns homens e mulheres limpar o lugar.
Outros tem que dançar.
Porém de verdade eles os tratam muito mal.
Batem.
Socam
Espeziam.
Paula fica com desejo de morte.
Triste corre para pular no mar e é impedida.
Atam as mãos e as pernas e Paula sabe que não é escrava!
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns morrem …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns se matam…
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Os awọn ẹmi buburu não deixam alguns morrem …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Os awọn ẹmi buburu impedem que alguns se matem …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem de chorar …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem de morrer …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem …
Passam tempo.
Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns…
Paula sabe que não é!
O navio para.
Chicoteados são obrigados a saírem. A luz forte cega. Tempos depois, Paula se vem em outra casa de pedra.
Outros Awọn ẹmi buburu que falam uma outra língua diferente daqueles awọn ẹmi buburu do navio. De perto e de longe são todos iguais no olhar de desprezo e nojo que entregam para Paula e o seu novo povo.
…e Paula sabe que não são!
Toma banho
Comem
Algumas feridas são tratadas.
Só meu pai falava. Apesar da comida estar boa. A gente estava meio engasgado. Sim sou negro de cor.
Paula aprendeu um pouco da língua do chicote ẹmi buburu. Não vacila mais. Antes do primeiro estalo já está de pé.
Antes do segundo, abaixa a cabeça.
Antes do terceiro, recua quatro passos para trás.
Outros awọn ẹmi buburu chegam perto. Gritaram, xingaram, mexeram nela. Bateram em suas costas. Chacoalharam.
Paula, a primeira de nossa família, que foi sequestrada e escravizada.
Como sempre a Paula também chorou ….
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