Trazer equidade no acesso aos serviços públicos é a principal meta de sua mandata feminista, antirracista e antifascista.
Jussara Basso é mãe, feminista, negra e periférica. Atuante nas lutas por moradia e dignidade humana. Moradora da Zona Sul de São Paulo, Jardim Maria Sampaio. Enfrenta no dia a dia todas as dificuldades da falta de estrutura das regiões esquecidas pelo poder público. Trazer equidade no acesso aos serviços públicos é a principal meta de sua mandata feminista, antirracista e antifascista.
Entrevista com a vereadora Jussara Basso ao repórter William Lemos.
WL – Primeiro eu gostaria que você falasse de você, como mulher.
R.: Eu sou uma mulher preta da quebrada, mãe, filha. Trabalho desde os 14 anos, tenho 47 agora, cuido da minha família toda, tenho três irmãs e minha mãe, tinha um irmão que faleceu vítima da violência em São Paulo. Comecei minha atuação política aos 16 anos no núcleo do PT existente na região, quando eu comecei a ter contato com a política, nunca militei organicamente até 2012 quando encontrei um coletivo, um movimento de moradia e passei a militar organicamente. Sou secundarista, não pude fazer faculdade porque o cálculo não fechava na época que terminei o segundo grau. Sobre mim é isso, sou mãe de uma filha, a Nicole, e hoje estou vereadora.
WL – Você acabou de comentar que com 16 anos descobriu a política, mas como você percebeu a política na sua vida?
R.: Olha, eu percebi a política nas ausências, minha mãe era a única que trabalhava em casa até os meus 14 anos e a gente passou por muitas… passou fome, né? Passamos fome, passamos frio, muita carência, muita vulnerabilidade. Lembro-me que a roupa da minha irmã mais velha, que era muito maior que eu, era passada de geração em geração, então quando as roupas chegavam a mim elas já estavam rasgadas, desgastadas. Quando eu comecei a trabalhar meu primeiro salário era 21 mil cruzeiros e a cesta básica era cotada em mais ou menos 25 mil cruzeiros, pra ter uma ideia da desvalorização do salário mínimo. O salário ia todo para casa e ainda faltava muita coisa… minhas irmãs cuidavam de crianças, meu irmão, que hoje é falecido, trabalhava de office boy e o dinheiro não dava… Eu percebi que a política podia intervir no sentido de dar mais acolhimento e mais condições de vida para as pessoas e passei a ler, eu conheci o Sr. Raimundo que começou a me explicar a política enquanto instituição, um mecanismo para a construção dos direitos sociais, pra garantir saúde, educação, o lazer. Nesse sentido o sistema político brasileiro é muito deficiente em garantir esses direitos, a partir disso eu me tornei uma autodidata.
WL – Como a sua história se relaciona com os movimentos por moradia?
R.: Então, em 2012, na verdade no finalzinho de 2011, eu fui mandada embora do meu emprego, passei por um período de depressão, minha vida sempre foi muito trabalho, muita correria, já tinha minha filha na época e entrei numa depressão bastante profunda, cheguei a ficar três meses sem sair de casa, e nesse período amigas tentavam me ajudar no sentido de me tirar de casa. Até hoje eu moro no limite entre a cidade Embu das Artes e Taboão, em Embu estava acontecendo uma ocupação sem teto e elas me chamaram pra conhecer a ocupação, pra fazer uma luta por moradia por que eu ainda coabito a casa da minha mãe, fui até lá, construí um barraco pra fazer essa luta e comecei a conhecer esse movimento, na época. Neste período eu passei a gostar da luta por moradia e passei a conhecer mais sobre a pauta, sobre a especulação imobiliária, passei a procurar compreender mais como é a distribuição espacial das cidades, das periferias e passei a militar organicamente nesse movimento em 2012 mesmo e fiquei nele por 10 anos, o MTST. No início do ano passado eu me desliguei definitivamente porque infelizmente da mesma forma que eu me encantei pela luta por moradia eu percebi que existe uma hierarquia consolidada dentro do movimento social que ainda coloca mulheres pretas como subordinadas ao homem branco, e isso de fato me desiludiu bastante.
WL – Quais as ações que você considera fundamentais para resolver os problemas de moradia na cidade de São Paulo?
R.: Nós precisamos de uma reforma urbana, nós precisamos de uma reformulação na divisão dos territórios, na divisão das riquezas, na divisão dos investimentos. Nós precisamos que essa urbanização torne-se controlada e que a gente consiga fazer com que as regiões periféricas também tenham equipamentos públicos de caridade, acessibilidade, transporte público, segurança, que a gente descentralize a riqueza da nossa cidade. Digo isso a “longo prazo”, mas é algo que é preciso iniciar agora com uma política habitacional efetiva, não podemos mais nos deparar com uma política habitacional que só investe no mercado imobiliário, que acaba “monetizando” uma política que era para ser para o social. Estamos discutindo o plano diretor na casa, hoje é a segunda audiência pública que vai ocorrer, nós percebemos que não existe uma vontade política no sentido de que as nossas riquezas sejam produzidas e redistribuídas para diminuir a carência das pessoas. Temos mais de 40 mil habitantes de rua na cidade, isso não pode continuar acontecendo, hoje há famílias inteiras em situação de rua, tem ainda um latifúndio urbano onde poucos detêm a propriedade da terra e muitos trabalham para manter a riqueza do estado, isso é uma discrepância completa. Esse aqui é um dos municípios mais ricos da América Latina, nós não podemos ter um município onde continuam pessoas morrendo vítimas da enchente porque moram em lugares insalubres, nós não podemos ter pessoas em situação de rua, nós não podemos ter pessoas exonerando mais de 80% de sua renda pra poder pagar aluguel, um dinheiro que vai e não volta, de fato existe uma necessidade emergencial de ter investimentos em moradias sociais para tirar as pessoas que estão em situação de rua, e dar a elas o mínimo de dignidade, para que a gente inicie uma pauta mais importante ainda que é a reforma urbana do município e do Brasil.
WL – Jussara, eu quero saber sua opinião sobre essa última ação do prefeito da cidade de São Paulo de retirar as barracas da população em situação de rua.
R.: Bom, tem duas coisas aí, a primeira é uma decisão do judiciário de derrubar uma liminar que impedia a prefeitura de São Paulo de fazer isso, é de uma irresponsabilidade tremenda a retirada dessa liminar, e segundo: são ações higienistas de desumanização da população em situação de rua, é o último elemento parecido com um teto que essas pessoas têm. Muitas delas deixam de ir para abrigos ou casa de acolhimento transitório porque lá não é permitido levar o pet, que é a única companhia que essa pessoa tem, outros deixam de ir por que vão se separar, o homem vai pra um lugar, a mulher pra outro e a criança para outro, não existe o acolhimento misto de famílias, não existem albergues que acolham também os animais dessas pessoas, aí você retira o último abrigo dessas pessoas, ali é a única possibilidade que essas pessoas têm de fugir do frio, de se proteger de insetos, de ter o mínimo que seja de conforto pra ter uma boa noite de sono, retiram a barraca, retiram a coberta e o que você dá para essas pessoas em troca? Absolutamente nada, o prefeito vai se deitar na cama e vai dormir, essas pessoas vão permanecer em situação de rua. Nós estivemos há pouco tempo, há dez dias, num centro de acolhimento transitório, o CTA 11 que fica aqui na zona norte, um lugar extremamente insalubre onde um senhor chamado Marcos de 45 anos morreu de forma bastante estranha ao cair da escada, o centro foi fechado e essas pessoas foram levadas para outro centro de acolhimento no Brás, num lugar inacessível, você chega nesses lugares e percebe que até existe um mínimo de dignidade, mas esses centros especificamente só acolhiam homens, outros só acolhem mulheres, mas e quando a família inteira está em situação de rua? Você separa cada um num lado da cidade, como é que essas pessoas se reencontram depois? Muitos não têm um celular, não tem uma forma de comunicação. Tem outro projeto que são casas de contêineres, onde as pessoas vão poder morar de seis meses a um ano e depois disso se não estiverem empregadas, se não tiverem condições de manter um aluguel vão voltar para situação de rua… Então, quer dizer, você continua tapando feridas abertas com band-aid, você tem que ter uma programação específica para essas pessoas, você precisa garantir para elas o mínimo de dignidade e o direito, o direito à moradia, à saúde, a educação… o Estado tem obrigação de produzir moradia, de produzir empregabilidade e de garantir a essas pessoas a dignidade.
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