Economista e artista senegalês, Felwine Sarr escreveu “Afrotopia” sobre a descolonização e o sonho africano
A descolonização é um processo muito longo. No final dos anos 60, os países africanos tornaram-se independentes, mas para se ter independência não basta um território e uma bandeira. A questão racial e a relação com os países colonizadores não terminou aí. As ligações políticas e culturais continuam a ser assimétricas porque foram construídas dessa forma. Não é em dez ou 20 anos que se reconstrói uma relação. Reconquistar a liberdade e a autonomia leva tempo. É preciso desarticular estas ligações, negociar uma relação mais justa e horizontal. A descolonização está na forma como se organiza a sociedade para que se possa decidir o futuro e atingir objetivos.
É um problema africano e europeu?
Sim, de ambos. A Europa decidiu pela descolonização porque tinha os turistas e era muito caro manter as colónias. Foi o contexto histórico, e não uma questão de arrependimento moral ao não contribuir para um mundo mais igualitário e aproveitar-se dos recursos existentes em África. A Europa não vai querer perder o acesso às matérias-primas e, se puder continuar a defender uma relação injusta do ponto de vista económico, vai continuar a fazê-lo. E também os líderes dos países africanos na altura recém-independentes não cortaram essa relação umbilical. Pensaram que imitar a Europa na organização social e política seria uma boa forma de desenvolvimento. Não rearticularam a História. Veja-se o caso da França, que continuou a intervir militarmente nas ex-colónias. Não se pode dizer que as coisas não tenham mudado. Há países que conseguiram ter bastante autonomia, mas outros, como a África do Sul, têm muito trabalho pela frente.
África precisa de reencontrar um caminho próprio?
Repare, África é o continente mais ancestral do mundo. As primeiras formas de organização social foram em África. Há uma história muito longa do que significa a vida e viver em sociedade. Toda a experiência humana passou por África. O colonialismo foi apenas um período curto na História, apesar de muito significativo. Alterou a trajetória dos países africanos. Não é possível reescrever a História, mas África pode reinventar-se desde que rearticule os legados históricos – incluindo o passado colonial – e escolha o seu caminho. Não me parece que isso esteja a acontecer. Não estamos a decidir que sociedade queremos. Para mim, essa é a questão central. Que tipo de equilíbrio pretendemos entre economia, ecologia e espiritualidade? Que tipo de ser humano queremos? Se respondermos a estas questões, podemos construir um modelo de sociedade centrado na nossa visão da História.
As gerações pós-raciais podem desempenhar um papel decisivo?
Sem dúvida. Está na hora de nos reinventarmos com novas ideias e um olhar progressista, em vez de estarmos sempre presos ao lado negro da nossa história recente.
É muito crítico das ONG. Boas intenções não são suficientes?
Não são. Não todas, mas uma parte delas julgam saber o que é bom para as pessoas. É quase um pensamento colonialista. Quererem ajudar não significa que saibam o que é melhor para as pessoas. Ajudar significa dar às pessoas o poder de decisão sobre as suas vidas. Quando não se tem essa capacidade, quer dizer que a relação é de dependência. Algumas ONG contribuem para esse vínculo. Quando abandonam os programas humanitários, as pessoas ficam pior do que estavam. Este é o meu primeiro problema. O segundo é que a ajuda, a curto prazo, pode ser boa, mas inibe as pessoas de procurarem soluções próprias. É preciso tentar e falhar até encontrar as respostas necessárias. A longo prazo, vai ser prejudicial. A solidariedade deve ser repensada e envolver todos os agentes envolvidos neste processo. As pessoas devem poder escolher a forma de ser ajudadas.
Estamos a passar por um período de grande turbulência política em que algumas questões parecem ser opacas. O racismo tem diferentes camadas?
Absolutamente. Um amigo meu usou no novo livro que escreveu o conceito de “racismo menor”. É um tipo de racismo do dia-a-dia, das conversas… É muito difícil combatê-lo porque não está na lei. É mais informal. O problema do racismo é a definição através do outro. O outro define-te e cataloga-te sem te conhecer por haver uma série de características que um determinado grupo, que se julga superior, tem. E o racismo não se define apenas nas relações. Pode ser institucional e instalar-se nas relações políticas, quando uma cultura se julga superior à outra.
Teve uma banda quando era estudante. A arte pode desempenhar um papel decisivo nestes processos?
As manifestações artísticas podem ser uma forma de combater o racismo. A literatura, a música e o discurso associado são muito importantes. Sobretudo a música é um bom exemplo. É uma arte participativa e de comunhão. É possível transmitir uma mensagem sem compreender uma palavra da letra, graças à vibração. A música é também um lugar de encontro sem hegemonias. A relação constrói-se apenas através da beleza ou das harmonias. Uma canção pode falar para toda a gente, mas o único critério de apreciação é a sensibilidade. E, além disso, é uma forma de lidar com a cultura do próximo. Mas pode também envolver riscos se a música africana for entendida de forma folclórica. Os ritmos são muito complexos na forma de tocar djembê ou bateria. Até na música, a abordagem é importante.
É possível pensar em África como um todo ou a dimensão não o permite?
O sonho de unificar o continente existe desde o séc. xix, mas é um projeto muito complicado devido à diversidade e às identidades locais. É complicado para os políticos abandonar a sua visão territorial e transpô-la para uma dimensão mais vasta. Era preciso partir de baixo e construir uma consciência pan-africana. Nada está feito para se construir um pensamento de pertença a uma comunidade maior. Há muito trabalho a fazer. Em 2050 seremos 2,5 mil milhões de pessoas. Não sei como será possível administrar tantas pessoas. É preciso repensar a formar de olhar para estas questões. Construir, e não apenas sonhar.
Vê-se como um afro-sonhador? Afro-realista?
(risos) Não, estou apenas a tentar ser afro-lúcido. Olhar para a realidade sem óculos de euforia ou desespero. Por vezes é difícil compreender a realidade, por ser muito opaca, mas acredito que estão a acontecer boas dinâmicas a nível econômico e demográfico. Nas novas gerações há vontade de construir uma África nova. Estamos a viver uma crise que não é apenas económica. É filosófica, ética e moral. Temos uma ordem, mas não sabemos para onde estamos a ir. O neoliberalismo não deixou lugar para o ser humano. Provavelmente, todas as sociedades se estão a interrogar sobre a forma de escapar. Em África, as questões são mais urgentes. Por isso é que a questão da utopia é tão importante. É necessário um espaço na sociedade para a utopia. Deve haver lugar na mente para a imaginação. Para que o sonho seja ativo e possa ser real.
Acredita que as novas gerações veem África de uma forma inclusiva e articulada com o resto do mundo?
É interessante essa questão porque ainda esta manhã estive a trabalhar no título de um livro sobre a relação de África com o mundo. África como parte do mundo, e não isolada. As novas gerações africanas estão no centro do mundo e a forma como se relacionam com África é sentirem-se cidadãos do mundo. A dinâmica não é separada. A questão mais importante neste século passa por africanizar globalmente e vice-versa.
Fonte: https://ionline.sapo.pt/559090
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