Entrevista com José Vicente - 10/08/01
Fotos e entrevista - Jader Nicolau Jr
Redação -Milton Cézar Nicolau



Na década de 90, em todo Brasil, foram criadas inúmeras entidades com o propósito de promover a cidadania da comunidade negra. Entre tantas que continuam ativas, gozando de prestígio e reconhecimento público, a AFROBRÁS, Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural, ocupa um lugar de destaque. Seja pela ousadia de seus ambiciosos projetos, como a Universidade Zumbi dos Palmares, ou pela variada composição de seu quadro de conselheiros, que reúne políticos, empresários, professores, profissionais liberais e artistas, como Antônio Pompeo, Camila Pitanga, Maria Ceiça, Thobias da Vai-Vai e outros famosos.

Três nomes estão à frente da AFROBRÁS: as gêmeas Ruth Lopes Costa, vice-presidente, e Raquel Lopes Costa, Diretora Executiva Financeira, além de José Vicente, que ocupa a presidência da entidade desde a sua fundação.

E é justamente com o advogado José Vicente que conheceremos um pouco mais sobre a AFROBRÁS.

Portal Afro – Como surgiu a AFROBRÁS?

José Vicente – Nunca concordamos com o fato de não podermos exercer plenamente nossa cidadania e de nem podermos sonhar em sair de um lugar que nos foi historicamente imposto. O projeto da AFROBRÁS veio bem de encontro a estas questões. Teríamos que melhorar a situação social do negro e para concretizar este ideal deveríamos trabalhar muito, partindo do princípio que tudo é possível quando se tem determinação e força de vontade. Mesmo diante de todas as adversidades, conseguimos vencer e o resultado foi darmos um passo adiante. Nossa vontade é de melhorar sempre. Somos ousados, utópicos e temos consciência do que podemos realizar. Nos dispomos a doar um pouco de nós, para contribuirmos com o todo, de alguma forma.

Portal Afro – "Sem educação não há liberdade": este é o lema da AFROBRÁS?

José Vicente – Desconhecemos a história de qualquer povo que tenha avançado em seu desenvolvimento sem investir em educação, no sentido mais amplo. É impossível dar um passo além sem que se conheça seu passado. Sabemos que ao negro nunca foi permitida a possibilidade de conhecer mais sobre si mesmo, e, a partir daí, definir seu espaço e a energia que deveria ser desprendida para seu desenvolvimento social. Isto é fundamental. Temos um problema estrutural que é a dificuldade de acesso a educação formal, que qualifica o cidadão. Não queremos diminuir a importância do problema econômico, mas não podemos desprezar a exclusão, que sempre foi combatida, desde os tempos dos quilombos. Agora, o momento nos é propício, e permite que este combate seja melhorado, pois será mais claro e definido. É por esta razão que entendemos que o caminho será o da educação e domínio da informação.

Portal Afro – Vocês lançaram os projetos "Pererê Pererê", depois "2000 para 2000" e agora a "Universidade Zumbi dos Palmares", todos educacionais. Eles fazem parte de um mesmo programa ou foram surgindo com o tempo?

José Vicente – Como grande parte das instituições, a nossa vem carregada de sonho e utopias. Desde o primeiro momento dirigimos nosso trabalho no sentido educacional. Nosso estatuto prevê que a AFROBRÁS contribuiria para a discussão da inserção do negro no contexto sócio econômico e cultural, realizando atividades e projetos que culminariam com a criação da "Universidade Zumbi dos Palmares", que será a melhor herança que poderemos deixar. O projeto Pererê-Pererê, em sua essência, seria completado com a universidade, parte de um grande projeto que pretende fazer com que o negro aumente sua auto-estima e passe a fazer parte das discussões da agenda nacional.

Portal Afro – O negro continua excluído do poder?

José Vicente – Este é um grande problema. A temática do negro continua invisível. Nunca é discutida nos espaços sociais, onde se decide tudo. Nunca se preocuparam com isto e nossa primeira providência deve ser fazer com que esta discussão venha à tona. Modestamente, a AFROBRÁS deu uma grande contribuição neste sentido. Ousamos dizer que existe a visão do negro antes e depois da AFROBRÁS. Demos um salto qualitativo muito grande. E, neste momento, de efervescência nacional, entendemos ter chegado a hora de lançar a universidade da cidadania, a Universidade Zumbi dos Palmares.

Portal Afro – O que o faz pensar que este é o momento certo?

José Vicente – Este momento, na verdade, se deve aos novos tempos que chegaram com a Globalização. Um fenômeno que por onde passa abre barreiras e obriga as pessoas a se adequar às suas normas, vinculadas a um pensamento central [leia-se EUA], que determina a abertura de mercados. Mas, para que esta abertura ocorra, outras questões deverão também ser resolvidas, trazendo à tona discussões sobre direitos humanos. Uma das regras dita que o país resolva, quando houver, suas pendências referentes a discriminações, de qualquer espécie. Estes temas, hoje, já são discutidos de forma diferente. O debate não é mais interno, ampliou-se, é internacional! O mundo inteiro discute a mesma coisa. O grande capital não está interessado em saber a cor de quem irá gerar lucro. Os poderosos instrumentos de pressão não são mais nacionais, vêm de fora, e têm muito mais força para implementar e forçar mudanças.

Portal Afro – O projeto da universidade nasce dentro do contexto da globalização? Formando jovens mais preparados para os novos tempos?

José Vicente – Nosso desejo é trabalhar menos no contexto sócio-econômico e muito mais a nível humanista. Não estamos especialmente preocupados em produzir técnicos para o mercado de trabalho. Nosso fundamento é produzir seres humanos melhor capacitados para respeitar um ao outro. Precisamos que negros e não negros aprendam a história um do outro, para que aprendam a se respeitar.

O primeiro raciocínio, portanto, não é de apenas capacitar um técnico negro para que assuma seu lugar no mercado de trabalho, mas sim para que aprenda a exercer sua cidadania, na prática, revertendo em benefícios para sua comunidade.

Portal Afro – A universidade seria então uma espécie de Quilombo de Palmares?

José Vicente - Entre tantos outros heróis brasileiros negros, Zumbi foi o que mais se destacou e o único a ser martirizado. A universidade será, sim, um reconhecimento a Zumbi, enquanto figura do inconsciente coletivo e a prova que o negro nunca se envergou, nem se submeteu, e, até hoje, se rebela contra a injustiça, a opressão, intolerância e discriminação de toda natureza. Gostaríamos que esta universidade fosse um novo Quilombo dos Palmares. Não existiu outro lugar tão simbólico de aprendizado e prática de cidadania do que Palmares, que, de certa forma, estamos tentando reinterpretar, dois séculos depois, como o Quilombo da Modernidade. Estaríamos retratando o Brasil atual, que nada mais é que um extraordinário quilombo, onde brancos e negros terão que aprender a conviver em harmonia e repartir o mesmo chão, com respeito mútuo.

Portal Afro – Com todas essas políticas que acenam com a possibilidade de cotas para afrodescendentes, muitos que não se julgavam assim, passarão a assumir essa origem. Como vocês agirão nestes casos?

José Vicente - Nosso trabalho é para que todos reconheçam que têm o pé na cozinha, na varanda, na sala... Por outro lado, entendemos que parte das pessoas que nunca se definiram como negros, passarão a fazê-lo, com a intenção de usufruir os benefícios que o sistema de cotas poderá oferecer. Precisamos aprender a identificar quem são os negros sinceros, que valorizam e tem orgulho de sua raiz. Por outro lado, existem os aproveitadores. É claro que não podemos impedir-lhes o acesso, mas eles terão que se submeter às nossas normas, e, quem sabe, não acabam se transformando em negros sinceros. Ser negro é uma disposição de espírito.

Portal Afro – Qual é o perfil de quem procura as bolsas de estudo?

José Vicente - Sempre que fechamos novos convênios para bolsas de estudo, abrimos a oportunidade para que as pessoas se inscrevam e participem do processo de seleção. A maioria que nos procura é negra. Curioso é ouvir as justificativas daqueles que não se enquadram no perfil proposto. Uns alegam ter bisavô negro, outros dizem que são brancos por fora, mas negros por dentro, e alguns até argumentam que sempre viveram no meio de negros!

Portal Afro – A AFROBRÁS também é famosa pelas grandes festas e eventos que realiza. Qual é o objetivo desses encontros?

José Vicente – Eles nascem da percepção que temos dos obstáculos que interferem nas relações entre os negros e da justa necessidade de se reconhecer o valor das pessoas. Historicamente, sempre fomos colocados uns contra os outros e com isto não se tem permitido que aplaudamos nossos compatriotas. São muitos os exemplos de negros que deram sua vida para que pudéssemos realizar, hoje, esta entrevista, sem que um camburão nos interrompa. E é justamente a eles, que tão poucas vezes são lembrados, que resolvemos realizar estes eventos. Especialmente o "Raça Negra 500 Anos", que surgiu num momento em que Brasil e Portugal comemoravam os 500 anos do descobrimento e ninguém falava da importância do negro neste processo. Pelo contrário, nós e os indígenas fomos saudados com cacetadas de borracha... Tínhamos que dar uma resposta adequada àquela situação. Criamos assim, o "Raça Negra 500 Anos", onde, através das personalidades, construímos um painel da importância da presença negra no Brasil. Eles deram sua contribuição e precisamos lembra-los, reconhecendo o valor de seus trabalhos. Todos que participaram sentiram-se honrados. Foi um dos melhores eventos já realizados neste país envolvendo a comunidade negra.

Portal Afro – Quais são os planos da AFROBRÁS para o futuro?

José Vicente - A resposta mais correta seria dizer "O futuro a Deus pertence" Mas, na verdade, estamos permanentemente preocupados com a complexidade de nosso trabalho e com as responsabilidades assumidas. Nossa intenção foi sempre a de contribuir. Não sei se podemos nos permitir determinar qual será o futuro da AFROBRAS. Talvez amanhã nosso desenvolvimento nos leve a outras atividades e tenhamos que assumir novas responsabilidades. O importante é continuar a cumprir com sucesso nosso trabalho em prol da comunidade negra.

José Vicente entrega documento da Afrobras para Benedita da Silva, presidente da comissão organizadora da Conferência Nacional Contra o Racismo, no dia 21 de março de 2001, no Teatro João Caetano em São Paulo.
José Vicente ao lado de Ruth, Raquel e o Ministro de Estado da Educação Paulo Renato de Souza, no dia 16 de maio de 2001, no Palatino, em São Paulo, no lançamento do projeto Universidade Zumbi dos Palmares.
José Vicente e o Ministro de Estado da Educação Paulo Renato