Cinema é magia...

É com este espírito que entrevistamos o diretor de cinema Jeferson De, que vem causando polêmica desde que lançou o documento "Gênese do Cinema Brasileiro", mais tarde apelidado "Dogma Feijoada". O movimento pretende estabelecer no Brasil a produção contínua de filmes que abordem a cultura dos afro-brasileiros e que sejam dirigidos e estrelados também por negros. Atualmente, De celebra o sucesso de "Distraída para a Morte", curta-metragem que tem tudo para virar cult: Ruth de Souza, Cíntia Raquel (a garotinha do Tang que fez carreira na TV Cultura, lembra?) e o rapper Xis no elenco, trilha sonora de Max de Castro e cenografia do artista plástico Samuel Santiago. Jeferson De e seus companheiros de "feijão" são uma esperança concreta de inclusão digna da raça negra dentro da produção cinematográfica do país.

Portal Afro – Quando e onde você nasceu? O que faziam seus pais?

Jeferson De – Nasci em 1968, na cidade de Taubaté, interior de São Paulo. Meu pai, já morto, chamava-se Orbelino e era metalúrgico. O nome de minha mãe é Sônia e ela trabalhava como costureira.

Portal Afro – Como nasceu a paixão pelo cinema?

CINEMA, substantivo masculino. Arte de compor e realizar filmes cinematográficos.

Jeferson De - Meu pai cuidava do clube dos funcionários da fábrica em que trabalhava. Entre as opções de programas exibia filmes para os associados. Lembro que viajávamos em seu fusquinha até a vizinha cidade de Caçapava buscar o projetista e seus equipamentos. Eu acompanhava todos os seus passos e ficava maravilhado quando aquele rolo inerte transformava-se num mundo de imagens e sons.

Portal Afro – Por que você mudou de Taubaté para São Paulo?

Jeferson De – Meus parentes moravam em São Paulo e sempre viajávamos para cá. Passei parte de minha infância correndo atrás de pipa no bairro da Casa Verde, Zona Norte da Capital. Em 1989 prestei vestibular para filosofia na USP, fui aprovado e aqui estou.

Portal Afro – Qual o filme que influenciou sua carreira?

Jeferson De – Quando vi "Faça a Coisa Certa", de Spike Lee, disse para mim mesmo: "eu quero e posso fazer isso". Também tive muita influência dos filmes de Roman Polanski, Martin Scorcese e Woody Allen.

Portal Afro – O fato de Spike Lee ser um diretor negro também foi marcante?

Jeferson De – Não sabia quem era e nem imaginava como era Spike Lee. Ele também não tinha a fama que tem hoje. Além disso, descobri depois, na escola, que "Faça a Coisa Certa" é um filme tecnicamente muito bem resolvido, com uma trilha magnífica, roteiro perfeitamente amarrado e dramaticamente muito bom. Minha preocupação, agora, acima de tudo, é não querer copiá-lo e transformar-me numa espécie de Spike Lee brasileiro. Confesso que está difícil.

Deve ser realmente difícil, a começar pela incrível semelhança física entre os dois... Falando nisso, seu amigo também cineasta Jean Claude Bernadet disse: "Não imite Spike Lee, você é muito mais bonito que ele".

Portal Afro – Qual seu primeiro trabalho profissional?

Jeferson De – Foi em 1995 com o vídeo "One, One, One", baseado no massacre de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo. Nele trabalhei com meu amigo Luís Miranda [conceituado ator de teatro]. Foi a primeira vez que dirigi um ator, que me preocupei com coisas como enquadramento e edição. Já estava entrando para o curso de cinema e a receptividade foi muito boa, o trabalho foi exibido na Itália, França e Dinamarca.

Portal Afro – E depois?

Jeferson De - Em 97 fiz "Paixão", um vídeo de colagens, ligado às artes plásticas. Depois foram vários trabalhos para a TV Cultura e em 99 rodei "Gênesis 22", que foi realmente meu primeiro filme, em película, com toda aquela tensão que é fazer um filme. Agora em 2001 acabei "Distraída para a Morte" e trabalho no projeto de meu primeiro longa.

Portal Afro – Como surgiu o "Dogma Feijoada"?

DOGMA, substantivo masculino. Ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa, e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema.

FEIJOADA, substantivo feminino. Prato típico brasileiro, preparado om feijão, em geral preto, toucinho, carne-seca, carnes de porco salgadas, linguiças, etc.

Jeferson De – Eu era o único aluno negro do curso de cinema e...

Portal Afro – Você abandonou a filosofia?

Jeferson De - Após dois anos de filosofia descobri que eu queria fazer cinema, e, por milagre, consegui uma transferência. Não é nada fácil ir para um curso onde a relação é de 25 alunos para cada vaga! Mas ainda quero voltar a estudar filosofia.

Portal Afro – Então...

Jeferson De - No curso, o professor Ismail Xavier pediu um trabalho sobre um diretor contemporâneo e eu escolhi Spike Lee.

É claro que o trabalho foi baseado em "Faça a Coisa Certa"

"Aí, fiquei pensando... Será que existem diretores negros no Brasil?"

Disposto a estudar o assunto, Jeferson ganhou uma bolsa da FAPESP (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pesquisou durante um ano os diretores negros no cinema brasileiro, a participação dos negros nos filmes e como o elemento negro era visto por diretores não negros.

Portal Afro – Qual o resultado da pesquisa?

Jeferson De – Naquele momento encontrei onze diretores negros. Dois deles muito especiais: Benjamin de Oliveira, que já produzia em 1908 e José Cajado Filho, um sujeito muito discriminado que passou em primeiro lugar para cursar Belas Artes e foi impedido por ser negro. Segundo Carlos Manga, a quem é concedida a paternidade da chanchada, seu verdadeiro pai teria sido Cajado, que anteriormente teria idealizado o gênero de maior sucesso na história do cinema brasileiro. Todas estas informações foram importantes para minha carreira e a concepção do "Dogma Feijoada".

Ao final da pesquisa, Jeferson concluiu que na chanchada o negro (geralmente representado por Grande Otelo) sempre era estereotipado como o sambista malandro ou ingênuo e ainda, o que era pior, segundo De, completamente assexuado, um idiota sem vida.

"Digo isto sem querer ofender nenhum diretor. Não é nada pessoal. É apenas o imaginário deles concretizado nas telas"

Por outro lado, ele diz que se o negro é imbcilizado nas chanchadas ou dramas da época, no Cinema Novo de Glauber, Cacá Diegues ou Nelson Pereira dos Santos, ele passa a ser supervalorizado, assumindo contornos de herói. Não por acaso, aponta De, seus ídolos era Zózimo Bulbul e Antonio Pitanga, negros altos e bonitos que se tornaram símbolos sexuais daquele tempo.

Para Jeferson o negro não foi devidamente representado em nenhum dos dois movimentos.

No meio termo entre as duas correntes ele detectou alguns diretores negros, que, até por terem sido atores do Cinema Novo, tinham em seus filmes a marca dessa influência. O que mais impressionou Jeferson foi notar que estes diretores não conseguiam realizar mais que um filme.

Analisando o trabalho, outro professor, Carlos Kalil, ex-diretor da finada EMBRAFILME, perguntou-lhe:
"Se você não concorda com a imagem do negro na chanchada e nem no Cinema Novo, qual é a tua, cara?"

Jeferson De - Como resposta escrevi um texto que poderia nortear o nascimento deste novo cinema, este momento em que os negros conscientes de sua história audiovisual e do que os outros fazem mundialmente, começassem a caminhar para frente e não mais para trás. Dei ao documento o nome de "Gênese do Cinema Negro Brasileiro", que foi carinhosamente apelidado de "Dogma Feijoada".

OS SETE MANDAMENTOS PARA SE OBTER O SELO DOGMA FEIJOADA:

1 – o filme tem que ser dirigido por um realizador negro.
2 – o protagonista deve ser negro.
3 – A temática do filme tem que estar relacionada com a cultura negra brasileira
4 – o filme tem que ter um cronograma exeqüível. Filmes-urgentes.
5 – personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos.
6 – o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro.
7 – super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.

Portal Afro – O que são filmes-urgentes?

Jeferson De – É um conceito. Por exemplo, se você tem R$ 5,00 ou R$ 7,00, compre um negativo, tire fotos de negros e faça um negativo feijoada. Se você tiver R$300,00 compre uma fita VHS, peça emprestado uma filmadora, faça um filme feijoada e mostre a seus amigos. Se tiver R$ 300.000,00 faça um curta-metragem feijoada em 35mm, chame Max de Castro para compor a trilha sonora e convide Ruth de Souza e Cíntia Raquel para os papeis principais. Caso você tenha 3 milhões de reais, faça um longa-metragem feijoada e mostre para o mundo! O importante é fazer, retratar sua realidade. Isto é urgente!

Portal Afro – Como você definiu os preceitos do dogma?

Jeferson De – Reuni alguns amigos que produziam audiovisual, Daniel Santiago, Noel Carvalho, Rogério Moura e outros. Alguns deles sugeriram mais pontos, argumentando que não bastava apenas que o diretor fosse negro e sim toda equipe (o problema é que não temos quadros para isto). Ao final, apenas eu concordava com os sete pontos do documento, mas todos admitiram que o primeiro ponto era fundamental. A partir daí resolvemos tornar o movimento público. A Folha de São Paulo propôs uma discussão no Espaço Unibanco de Cinema e acabei assinando sozinho o manifesto. Depois os outros começaram a aderir e produzir filmes com o selo dogma feijoada.

Portal Afro – Qual a reação dos diretores não negros diante de sua proposta?

Jeferson De – Conversei com vários deles propondo a discussão do dogma. Contatei André Klotzel, Ricardo Dias e outros. A resposta mais significativa veio do mais querido de todos: Cacá Diegues. Mandei-lhe um e-mail e ele respondeu dizendo, mais ou menos assim:
"Jeferson é isto mesmo, está na hora de vocês assumirem este papel, este é o caminho".
Fiquei muito honrado com sua resposta. Pensei que ele não teria tempo para mim por estar envolvido na época com o lançamento de "Orfeu" nos Estados Unidos. O reconhecimento do valor do dogma por Cacá Diegues foi muito importante.

Portal Afro – Por que?

Jeferson De – Ele foi o diretor que mais dirigiu negros e o que mais abordou aspectos da cultura afro-brasileira em seus filmes. Foi também duramente criticado e detonado por isto. Eu particularmente tenho uma relação de amor e ódio com ele. Adoro Ganga Zumba, gostaria muito de poder utilizar o mesmo roteiro para filma-lo com outro olhar.

Portal Afro – Fora "Distraída para a Morte", quais são os próximos filmes com o selo dogma feijoada?

Jeferson De – O próximo será "A Revolta do Videoteipe", de Rogério Moura, que estará pronto em agosto, depois vem o documentário "Novos Quilombos de Zumbi", de Noel Carvalho e, fechando o ano, "Família Alcântara", de Daniel Santiago.

"É possível, sim, negros produzindo audiovisual no Brasil. Temos um olhar e uma forma de retratar nossa realidade que somente nós negros podemos realizar. É óbvio que qualquer um pode colocar um negro contando piada de outro negro, por exemplo, mas não conseguirá fazer isso assim como nós".

Portal Afro – Existe um público negro significativo que freqüenta cinema no Brasil?

Jeferson De - A questão do público é bem complicada e não é um problema exclusivo dos negros. O público de filmes brasileiros é muito pequeno, de curtas, então, é mínimo. Somente os freqüentadores do MIS (Museu da Imagem e do Som), dos Centros Culturais ou assinantes de tv a cabo têm acesso a nossas produções. Portanto, não basta ter um blá blá blá teórico e fazer um filme. É preciso descobrir caminhos alternativos para exibi-los. Com "Distraída para a Morte" já começamos a fazer isso, com exibições na COHAB 2, em Itaquera, e em ong’s ligadas à cultura negra.
"Precisamos fazer com que o filme vá ao encontro de seu público e não ficar esperando que o público venha ao encontro do filme".
O público negro que eu gostaria de atingir não tem dinheiro para se deslocar ao centro da cidade para assistir um curta-metragem. Além de buscar estes espaços alternativos é preciso ter uma linguagem que vá de encontro aos anseios deste público. Na verdade, são jovens negros que apenas irão ver meu filme se houver uma identificação com ele. É isso que venho experimentando nestas pequenas passagens que já tivemos, como, por exemplo, na Fala Preta [ong que trabalha com adolescentes negros] onde a repercussão foi ótima.

Portal Afro – Você conhece seu público negro? Ele é parecido com você?

Jeferson De – Tive uma infância tranqüila no interior, com meu pai e minha mãe, pude estudar e trabalhar mais tarde. Sei muito bem que esta não é a realidade da maioria dos negros. Não sei como vive aquele negro que mora no Sul, onde quase neva, e também desconheço a rotina daquele que cata coco no Nordeste. Se os cineastas de lá falarem sobre isto, será um grande lance. O equívoco é retratar os negros brasileiros como se fossemos apenas um só. Não somos iguais, é preciso falar de nossas diferenças. Eu, particularmente, falo para o jovem negro de São Paulo, ou de outra grande metrópole.

Portal Afro – Você vem sendo muito bem tratado pela crítica. Eles te entendem, gostam realmente de seu trabalho ou seria politicamente incorreto "descer a lenha" no trabalho de um jovem cineasta negro?

Jeferson De – Exatamente isto, só recebo críticas positivas. Sinto que a crítica ainda pega muito leve, talvez por medo de ser mal entendida ou talvez criticar um negro não seja uma coisa muito boa.

Portal Afro – Um pouco de paternalismo, talvez?

Jeferson De – Acredito que até agora tem sido assim, com uma exceção.

Portal Afro – Qual?

Jeferson De – A melhor crítica que ouvi sobre meu trabalho foi de um negro, que pegou pesado.

Portal Afro – Quem?

Jeferson De – Joni Anderson.

O jornalista Joni Anderson era na época colunista da extinta coluna black da Revista da Folha, onde a crítica foi publicada.

"Ele dizia não concordar com os estereótipos que eu utilizava e que eu era apenas uma promessa, ainda não havia provado nada. Disse tudo isto de forma docemente cruel. Gostaria muito que ele visse meu trabalho agora, para saber o que pensa. Realmente agradeço, foi a crítica mais sincera e construtiva que recebi".

Portal Afro – Por que você acha que os outros jornalistas têm dificuldades em criticar seu trabalho?

Jeferson De – Em "Distraída para a Morte", por exemplo, os jornalistas não negros têm dificuldade em se situar quando eu começo a fazer piadas racistas sobre negros. Tanto que ao final do filme todos ficam sem graça, em silêncio. Penso que os incomoda por ser a realidade que eles compartilham diariamente com seus empregados, motoristas, os guardadores de carros, enfim todos os negros que os servem, mas que nunca foram enxergados como um igual.

Portal Afro – É uma questão delicada...

Jeferson De – É um momento novo para eles. Negros brasileiros fazendo filmes sobre negros que criticam outros negros! A questão é que estamos obrigando as pessoas a olharem para um negro que tem um argumento lógico e formal, que as pessoas entendem e ficam sem graça. E complicado também é o questionamento ao próprio cinema brasileiro.
"Eu não aceito mais ninguém no cinema brasileiro tirando sarro de minha mãe, de meu pai, de mim mesmo, como sempre vi até hoje. Quem retratar o negro terá que faze-lo com respeito".

Portal Afro – De que forma vocês pretendem denunciar essa "falta de respeito"?

Jeferson De – No próximo Festiva de Curta-Metragem de São Paulo, pretendemos entregar o Troféu Feijoada para o cineasta que mais desrespeitar os negros no Brasil. O premiado também será convidado para degustar uma autêntica feijoada, para ver se aprende a entender essas pessoas com as quais ele convive desde a infância.

Portal Afro – Mas você não acha que também temos nossa parcela de responsabilidade nesta história?

Jeferson De – Claro. Principalmente porque os negros aceitam tudo, sem criticar. Existe uma questão que vai além de todo o mal físico causado pela escravidão. O estrago maior foi na cabeça, que se reflete principalmente na juventude, que se acha incapaz de desenvolver trabalhos que não sejam manuais, desprezando assim seu intelecto. É isto que tentamos quebrar. É claro que podemos tocar um pandeiro muito bem, mas somos capazes de fazer qualquer coisa que outro jovem branco faça! Nós do dogma feijoada, por exemplo, estamos fazendo filmes...

Olha, às vezes assumo um tom meio pesado em meu discurso... Mas sou da paz!

Portal Afro – Fale-nos sobre "Distraída para a Morte"

Jeferson De – Desde o inicio decidimos que o filme seria tecnicamente impecável.

Para garantir uma trilha sonora de primeira qualidade convidamos Max de Castro, que fez um trabalho que seguramente é um dos melhores na história do cinema brasileiro. Outro cuidado foi com a fotografia, não queríamos essa história de imagem melecada e do negro que não aparece direito. Quem assistir ao filme verá que a imagem é ótima.

O elenco de "Distraída para a Morte" é uma atração à parte: Ruth de Souza, João Acaiaba, Cíntia Raquel, o rapper Xis e outros não menos "engajados".
Jeferson vem acumulando vários prêmios com "Distraída para a Morte". O último foi o de melhor montagem no Festival de Belo Horizonte.

Portal Afro – O cinema tende a ser o reflexo do país que o produz. Ao vermos o negro excluído da produção brasileira, podemos concluir que o cinema efetivamente discrimina os negros?

Jeferson De – O negro no cinema brasileiro tem funcionado como objeto e não como sujeito da ação cinematográfica. Cada cineasta tem o direito de fazer o que quiser da forma que quiser e tal. O problema é que nesta história sempre estivemos como objeto, nunca falamos como gostaríamos de ser retratados e raramente conseguimos fazer isto, sempre fomos excluídos desta parada.

Portal Afro - Discrimina ou não discrimina?

Jeferson De – Discrimina, mesmo. Posso indicar alguns filmes que ilustram a péssima imagem que o negro tem no cinema: "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, "Orfeu", de Cacá Diegues, "Ed Mort", de Alain Fresnot, "Buena Sorte", de Lúcia Murat, "Terra Estrangeira", de Walter Salles Júnior, "Viver a Vida", um curta de Tatá Amaral, entre outros.

Portal Afro – E "Central do Brasil"?

Jeferson De - Não consigo ver negros neste filme.

Talvez por não existirem. O único (um trombadinha da Central) é assassinado logo no início do filme.

Portal Afro – De onde vem esta discriminação?

Jeferson De - Não diria que o cineasta discrimine propositalmente, e sim que ele foi educado desta forma e tem dificuldade em retratar o negro. Como nenhum negro vai até ele e reclama, fica tudo por isto mesmo. Lembro que uma dessas poucas reações da comunidade negra foi quando Cacá Diegues fez Xica da Silva, Beatriz Nascimento escreveu um artigo que dizia, entre outras coisas:

"Este senhor tem que parar de fazer seus filmes. Está decretado o fim da carreira de Cacá Diegues".

Eu discordo. Considero Cacá um grande cineasta que expressava suas idéias e seu pensamento sobre o negro brasileiro, pensamento este que também discordo. Mas é o pensamento dele. É o imaginário que percorre a cabeça de vários diretores brancos e até mesmo negros!

Portal Afro – Dá pra mudar isto?

Jeferson De – Temos que pegar nossas câmeras e produzir. Cometermos também nossos próprios equívocos. O fato de colocarmos a mão na massa não quer dizer que eu vá sempre acertar, que Joel Zito ou Daniel Santiago irão sempre acertar... Devemos ter o direito de lutar para contar nossa própria história, de nossa maneira, é isto que queremos fazer.

Portal Afro – Você está preparado para as conseqüências que o "Dogma Feijoada" podem gerar? Isolamento e confrontos ideológicos, por exemplo?

Jeferson De – Eu estou preparado. Muitos negros que trabalham na área pensam que o que faço é um equívoco por cercear a liberdade. Na verdade ao colocar a questão do dogma quero a princípio provocar o debate. Gostaria que surgissem outros movimentos que fossem contra o dogma, outros negros que exponham suas idéias. Em Recife, por exemplo, teve um manifesto muito importante, com ênfase na questão da representação cênica e que reivindicava a garantia de cotas para atores negros. Eu discordo totalmente disto.

Portal Afro – Por que?

Jeferson De - Quando se conhece como funciona o sistema, não adianta chegar para os produtores e exigir uma cota de 30% de negros nas produções. Claro que é uma medida importante, mas não será quantitativamente que resolveremos o problema, temos que lutar por qualidade. Como diz Milton Gonçalves: "Mais que ser balconista, quero ser o dono do negócio"

Portal Afro – Mas nos Estados Unidos isto existe e funciona, não?

Jeferson De – Mas lá tem toda uma questão, é outra história... Aqui o governo nem consegue dar uma escola decente para o povo, quem dirá garantir cota de participação para negros no audiovisual. É uma questão muito complicada. É claro que enquanto lei é interessante, mas não estou interessado em ter mais uma lei, não sou político, nem quero ser, apesar de estar sendo por acaso, afinal "todo ser é político", como diria Brecht... Quero efetivamente fazer cinema. Propus um dogma há um ano atrás e agora estou apresentado meu filme, e vem ai mais três com o selo para este ano. Para mim esta lei é um esquema furado, eu não preciso de cota de participação em meus filmes...

Portal Afro – Você...

Jeferson De – Mas se eu garantir 100% não será por política ou militância, e sim por saber exatamente o que meu público quer. Claro que não falo em nome de todos os negros. Diria que luto por um cinema de fato. Não quero apenas ter direitos... Quero ver pessoas sentadas na platéia vendo meu filme e estou conseguido isto e a turma do dogma também. Diria que ter leis pode ser muito bonito, mas quem esta efetivamente na área sabe que não funcionaria de forma tão simples. Mas veja bem, não quero melar nenhum processo.

Portal Afro – A arte depende cada vez mais da iniciativa privada. Até que ponto ela está interessada em investir em iniciativas da comunidade negra?

Jeferson De - Sou a experiência viva deste interesse. Uma empresa sensível a esta questão é a Gravadora Trama e a Trama Filmes, que sabe que negro no Brasil é um bom negócio. Digo que quando se vê um negro em um filme e os diretores ou produtores que propuseram isto forem brancos, não foi por filantropia. Se o negro está lá é porque vende, de alguma forma. Se o Netinho, por exemplo, está apresentando um programa na Record é por ser um bom negócio. Esta é a grande mudança. Entrarmos no processo de produção. É óbvio que ter um diretor

ou produtor negro não garante nada, poderá ser mais um "diretor Pitta", daqueles não tocam na ferida, como muitos que existem por aí. É preciso identificar-se de forma séria e profunda com as questões negras, sem ingenuidade, tratando também de custos e do público que se quer atingir.

Portal Afro – Você esteve há pouco tempo em Ouagadougou, capital de Burkina Fasso, no maior festival de cinema africano do mundo. Por que é tão raro assistir filmes africanos no Brasil?

Jeferson De – Em primeiro lugar os distribuidores não conhecem estes filmes. O único contato que eles tem com o cinema africano é quando estas produções participam de festivais em Paris, Berlim ou Nova Iorque, por exemplo. Por outro lado, um distribuidor brasileiro não vai viajar mais de 20 horas para chegar a Burkina Fasso, num grande festival como aquele e trazer alguns filmes. Não há interesse. É muito mais barato ir a Cannes. Enfim, businnes.

Portal Afro – E como é a produção cinematográfica dos africanos?

Jeferson De – Realmente eles têm uma produção enorme. Os cineastas africanos estão há anos luz da gente. O Dogma Feijoada aprendeu muito com esta minha viagem até lá. Um dado interessante é a associação criada por eles, que recebe dinheiro de instituições do primeiro mundo. Com isso criaram um foro de discussão onde o cinema africano é constantemente analisado e repensado, possibilitando a troca de informações entre os cineastas de diversos países. Para se ter uma idéia do nível de organização deles, durante o festival, a Kodak ofereceu um work-shop para os profissionais, apresentando seus novos produtos, orientando os profissionais a utiliza-los de forma correta ao fotografar a pele negra. Estamos tentando fazer o mesmo aqui. Ampliando esta discussão para todos os interessados.

Portal Afro – O cinema que você produz está mais próximo dos países africanos ou dos Estados Unidos?

Jeferson De – Antes de viajar para a África, eu discutia com Lúcia Nagib, que é uma especialista em cinema africano, jurando que meu cinema era super parecido com o africano, e ela dizia que o dia em que eu fosse ao festival de burkina eu descobriria que não tinha nada a ver. Quando comecei a ver os filmes do festival conclui que ela tinha razão e que meus filmes estão muito mais ligados à produção norte-americana.

Portal Afro – Como é o cinema africano e qual a dimensão desse festival?

Jeferson De – O cinema africano é rico em magia, com uma dimensão espiritual muito forte, não se prendendo a convenções e indo muito além da matéria, das leis da física. O festival é impressionante, são mais de cem filmes, eu vi poucos (em torno de 15). É impressionante, toda cidade participa, alguns filmes são exibidos no estádio de futebol lotado e as pessoas aplaudem, xingam e choram. É muito bonito.

Portal Afro – Seria mais interessante o cinema brasileiro aproximar-se do africano?

Jeferson De – Na verdade, devemos mergulhar em nosso próprio país. O africano faz cinema com a cara africana, o norte americano o faz com sua cara, nem um e nem outro conhece o Brasil. Quando fui mostrar meu filme e me apresentei como brasileiro, as pessoas falavam "Pelourinho, Rio de Janeiro, Carnaval". Aí eu dizia: Não, sou de São Paulo. "Ah, São Paulo... Maradona!" Eles não nos conhecem! Não sabem que existem negros no Brasil que não sambam e nem jogam futebol.

Portal Afro – Mas como mergulhar na identidade negra brasileira se ela ainda não existe?

Jeferson De – Por isso é que o documento que originou o dogma chama-se A Gênese do Cinema Negro Brasileiro, o ponto zero, portanto. Para assistir filmes com elenco negro teremos que procurar uma produção norte-americana! Um dos sustos que a platéia leva ao ver meu filme é perceber um monte de negros falando português, que não estão sambando nem jogando futebol.

Portal Afro – Tudo isto ao som de hip hop... Já não é uma concessão ao modelo norte-americano?

Jeferson De – Não. Minha luta e a de Xis ou Max de Castro é preservar a música brasileira. É verdade que não se abre mão de colocar um naipizinho de Marvin Gaye, Steve Wonder ou Quincy Jones, afinal eles são bons. Mas nenhum de nós dispensa Ben Jor, bossa nova, música brasileira, enfim.

Portal Afro – Indique-nos cinco filmes nacionais onde a presença do negro é legal.

Jeferson De – "Ganga Zumba", de Cacá Diegues
......................."Compasso de Espera", de Antunes Filho
......................."O Catedrático do Samba", de Noel Carvalho
......................."Aruanda", de Linduarte Noronha
......................."Distraída para a Morte", de Jeferson De

Quero dialogar com a periferia, com meus amigos negros que moram em zonas mais centrais. Quero que as pessoas participem e critiquem. Embora o dogma tenha saído de um estudo acadêmico, que entendam que esta discussão não é um privilégio apenas da turma de cinema, e, sim, de toda comunidade.

Talvez daqui a três anos, quando eu estiver concluindo meu segundo ou terceiro filme [figuinha!], possamos propor um cinema feijoada feito por diretores de outras etnias, que filmem o negro com o respeito merecido.

Infelizmente neste momento isto não é possível, temos que estampar nossa cara na película e na televisão. Este é meu projeto e meu filme. Não estou, apenas, neste filme... Este projeto é de um negro. E ponto final.

Você poderá conhecer mais sobre o Dogma Feijoada acessando www.dogmafeijoada.com.br e a coluna feijoada de Jeferson De no site da MTV.

...........Dogma Feijoada. Brasil, 2005. Documentário. Direção: Jeferson De.
Filme que mostra a origem do manifesto que revolucionou o cinema no Brasil e mudou o perfil do público. Jovem negro do interior vai para a "cidade grande" estudar filosofia. Dois anos depois troca Platão pela sétima arte e inicia carreira como diretor de cinema, que, mesmo "curta", se mostra fértil: lança o "Dogma Feijoada", movimento que promete dar visibilidade a negros no cinema e filma "Distraída para a Morte", que cai nas graças dos críticos, atraindo as atenções da mídia e do movimento negro.
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Feijoada
Grande Otelo
Zózimo Bulbul
Antonio Pitanga
Ruth de Souza e Cíntia Raquel durante as filmagens de "Distraída para Morte",
foto de Vantoen Pereira
foto de Vantoen Pereira
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