Dra. Eliane Chagas

Na sala de aula do curso de "Pós-Graduação" em Medicina Esportiva, durante a aula de psiquiatria, uma das cadeiras do curso, o professor faz a surpreendente pergunta:

- Este curso é apenas para médicos?

Apesar de a pergunta ter sido lançada de modo genérico para a turma, a moça decidida, responde:

- Se não fosse dirigido para médicos, o curso não teria o nome de "medicina esportiva".

O nome da moça era Eliane. Dra. Eliane Chagas, médica gineco-obstetra, que cursava a pós-graduação em medicina esportiva, na USP. Detalhe: Eliane é negra.

"Vejam vocês, talvez se houvessem apenas brancos, japoneses ou europeus na sala o professor não teria feito esta pergunta. Mas como eu estava lá, mulher e negra, isto chamou sua atenção".

Eliane Chagas conta-nos esta história com muito bom-humor, próprio de pessoas seguras e habituadas a confrontar-se diariamente com a ignorância de alguns despreparados para lidar com os novos tempos. Indivíduos acostumados a enxergarem negros apenas como serviçais, surpreendem-se ao se deparar com especialistas altamente capacitados em áreas historicamente dominadas por brancos ou orientais. É o caso de nossa entrevistada:

Portal – Dentro de sua área, que considerações a Senhora poderia tecer sobre a saúde da mulher negra?

Eliane Chagas - A mulher negra é uma mulher especial, forte, trabalhadora e batalhadora, que tem algumas patologias próprias da raça negra. Dentro de minha área, de minha especialidade que é a ginecologia, o mais evidente é o mioma uterino, que é extremamente comum dentro da raça negra. Normalmente, essa doença desenvolve-se em mulheres maduras, por volta dos 40 anos, porém já temos casos de meninas que já apresentam a doença.

Portal - A pré-disposição para o desenvolvimento do mioma uterino vem de herança genética ou é decorrência de fatores externos, como carência de condições ideais higiene?

Eliane Chagas – Infelizmente não temos base para afirmar porque a mulher negra é acometida por esta doença. Sabemos apenas, que dentro dos aspectos raciais a mulher negra é a que mais desenvolve essa patologia.

Portal – As precárias condições emocionais em que estão submetidas grande parte da comunidade negra interferem diretamente na saúde física destas mulheres?

Eliane Chagas – Perfeitamente. A medicina psicossomática explica alguns aspectos da doença. A doença é uma somatização daquilo que o indivíduo pensa, age e sofre. A doença seria então o indivíduo carregando o soma, ou seja o corpo, com aquelas questões emocionais. É o indivíduo somatizando o emocional. Então quando você perguntou anteriormente se os tumores uterinos estariam relacionados com questões de ordem social, a medicina psicossomática explicaria que existe uma relação, sim. Seus conceitos dizem que quando o indivíduo está equilibrado emocionalmente, ele não desenvolve o tumor, e mesmo caso os tumores já estejam instalados, se houver equilíbrio emocional e prática de esportes, onde a beta-endorfina é eliminada, ele estaria diminuindo a intensidade da ação deste tumor. Hoje existem algumas linhas que dizem que a tumoração estaria relacionada à afetividade e ao emocional, então valorizamos o aspecto da medicina psicossomática.

Portal – Diante destes aspectos, a senhora acredita ser necessário o desenvolvimento de um aparato de saúde na rede pública direcionado para mulheres negras?

Eliane Chagas - Sem dúvida. É cada vez mais importante a relação entre o médico e a paciente. Nesta relação é preciso que exista a conversa, o diálogo, a explicação. É preciso determinar um tempo maior para a consulta, pois muitas vezes o paciente vem num momento de aflição e sai muito melhor somente com a escuta de seus problemas. É uma certa orientação sem medicação. Às vezes essa aflição nasce da própria ansiedade da doença que o acomete, porém sem explicação. Quando se explica a razão daquilo, que pode ser um fator emocional, ele já sai melhor, tentando até resolver a situação.

Portal – Nos indicadores sociais brasileiros, a mulher negra ocupa as piores posições. O amparo que ela recebe do setor público confirma essa norma?

Eliane Chagas - Infelizmente sim. Nossas condições não permitem acesso a um consultório privado. É bem verdade que uma pequena parcela de nossa comunidade tem hoje um nível econômico melhor, uma participação maior dentro da sociedade brasileira, permitindo que ela possa freqüentar um consultório privado, que é o caso de meu consultório, onde às vezes, recebo pacientes negras, fato que me da muita alegria. Percebo também que para elas é igualmente gratificante ser atendida por uma medica negra.

Portal – Então uma paciente negra ser atendida por uma médica negra já seria um bom começo?

Eliane Chagas - Sem dúvida, isto facilitaria em muito a consulta. Por exemplo, para mim, que sou negra, quando vejo um colega negro dentro em um congresso, fato que infelizmente não é comum, fico muito alegre e tento às vezes me aproximar dele para trocar experiências. A empatia é natural, não apenas no aspecto médico, mas de modo geral.

"Vejo meus colegas com o mesmo intuito que o meu e sinto-me feliz: melhorar a questão educacional e de saúde, com isto estaremos melhorando todas as condições que fazem com que nossa comunidade não ocupe patamares mais elevados dentro da escala social. Acredito, porém, que já conquistamos 1/3 do que nos pertence e temos direito. Faltam mais 2/3 e espero que isto não demore muito. Com a valorização da auto-estima, com o negro tendo consciência de sua negritude, de sua posição, chegaremos lá. Nós somos fortes, temos uma longa história de luta e isto nos torna mais fortes. Veja bem, não me queixo dessa luta. Sou muito mais forte que meus colegas da comunidade branca, pois hoje consigo trabalhar bem melhor com as dificuldades, graças a meu histórico".