Entrevista com Berenice Kikuchi
29/09/01 - realizada em Piracicaba no Clube 13 de Maio
Entrevista e fotos - Jader Nicolau Jr
Edição - Milton César Nicolau

Você sabe o que é Anemia Falciforme? Sabia que é uma doença que atinge praticamente somente negros? Já ouviu falar da Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo? Caso você não possa responder a nenhuma das perguntas, não se culpe. As informações sobre essa doença e suas conseqüências são praticamente inexistentes. Pelo menos por parte dos órgãos de saúde do governo. Felizmente, iniciativas como a de Berenice Kikuchi, graduada em enfermagem e especialista em anemia falciforme, que fundou a associação e viaja pelo país dando palestras e orientando outros profissionais, lança uma luz de esperança a tantos afrodescendentes que sofrem com esse mal. Conheça o trabalho de Berenice Kikuchi:

Portal Afro – Como está a saúde da população negra no Brasil?

Berenice Kikuchi – A discussão da saúde da população afrodescendente é recente na sociedade brasileira, e resulta, principalmente, da luta das mulheres negras, que vêm apontando as graves necessidades de nossa população. E essas urgências são decorrentes, justamente, das nossas condições de vida. Então, a única doença que nos atinge, com um fundo basicamente biológico, é a anemia falciforme, as outras, como hipertensão, diabetes do tipo 2 e o G6P, que é uma deficiência sanguínea, prevalecente na população negra, são doenças que tem seu desenvolvimento associado diretamente às condições de vida. Além dessas, hoje temos várias doenças que estão cada vez mais freqüentes na comunidade negra, como o HIV, que se espalha por nossa falta de acesso a informação, a preservativos, e ao mito sexual que envolve a população negra. Portanto, precisamos discutir a saúde considerando dois fatores: o biológico, ou seja, a anemia falciforme; e o social, que facilita, por exemplo, o desenvolvimento da hipertensão, que tem, também, um fator biológico, mas que é potencializado pela falta de acesso a um tratamento contínuo, aos remédios, caros, e até por nosso hábito alimentar, exagerado em gorduras e temperos.

Portal Afro – Em Registro, no interior de São Paulo, algumas doenças da população carente, foram beneficiadas a tempos atrás por um tratamento com ervas medicinais. O processo envolvia desde o plantio, efetuado pelos próprios moradores, até os postos de saúde da cidade, que orientavam os pacientes nos tratamentos e dosagens. A senhora conhece alguma iniciativa nesse sentido, direcionada à comunidade negra?

Berenice Kikuchi – Não. Direcionada exclusivamente para a comunidade negra, não. A questão é que ainda não existem fitoterapeutas pesquisando a anemia falciforme. Por outro lado, existem tratamentos alternativos que vêm atenuando o sofrimento das pessoas: a acupuntura, utilizada com sucesso em Cuba e nos Estados Unidos, sessões de relaxamento e até hipnose, muitas vezes eficiente no controle das dores dos pacientes.

Portal Afro – Então, políticas alternativas de tratamento poderiam baratear os custos dos tratamentos, quebrando a dependência dos grandes laboratórios?

Berenice Kikuchi – Esses laboratórios tem um grande monopólio, com muito poder e dinheiro. Veja a questão dos genéricos (substâncias ativas sem o rótulo dos grandes laboratórios), como é difícil encontrá-los. Então, é claro que medidas nesse sentido modificariam as regras do jogo. Mas, para que isso aconteça, temos que adquirir conhecimento e popularizar o saber, o que é difícil, pois temos poucos multiplicadores. Quanto se fala em anemia falciforme, por exemplo, sou uma das raras profissionais que conhece a doença em seus vários aspectos: biológico, social, étnico, de gênero, político, de impacto na família e nas questões ligadas à reprodução.Toda essa gama de saber se deve a oportunidade que tive de estudar, graças a bolsa de estudos. Nossa autonomia virá, portanto, somente através do conhecimento. Precisamos parar de pensar que tudo que nos oferecem é ótimo, jamais questionável.

Portal Afro – Fala-se sobre anemia falciforme nas universidades? Quais informações a comunidade tem sobre as doenças que a atingem?

Berenice Kikuchi – Somos a maioria do povo brasileiro e não temos informações precisas de como é a saúde dessa população, do que ela adoece e de como morre. E isto realmente acontece de forma diferente. Há um outro percurso, uma outra evolução. Por isso, a importância do quesito cor. O problema é que isso sempre foi considerado como uma postura racista, de privilégios. Por isso a luta é árdua e temos que interferir nos currículos. Eu saí da escola sem saber nada sobre anemia falciforme e meus colegas continuam saindo na mesma condição. No meio acadêmico, não existem pessoas que saibam falar, com propriedade, sobre anemia falciforme, do ponto de vista clínico e de todas suas implicações sociais e políticas. Estamos numa fase inicial, lidando com a doença e não com a saúde. Pretendemos um dia lidar com a saúde, apesar de sabermos que a população negra é doente, principalmente pelos males psíquicos que sofre por pertencer a essa raça, pelas cobranças que enfrenta se quiser vencer, ou então pela marginalização e desqualificação impostas pela sociedade.

Portal Afro – Como é o programa de tratamento da anemia falciforme em sua associação?

Berenice Kikuchi – Trabalhamos com três etapas interligadas: diagnóstico, tratamento e suporte ao cuidador do doente, geralmente a mãe. Por ser uma doença que trás muito sofrimento à família, se não ampararmos essa "enfermeira voluntária", ela não terá estrutura para suportar a barra. Temos que estar atentos. Hoje, nos centros de saúde, quando a doença é diagnosticada, o paciente recebe um papelzinho e a orientação para procurar um hematologista. Sem maiores esclarecimentos ou explicações. Nos bancos de sangue, então, o descaso é ainda maior: os agentes de saúde ao constatarem a doença, simplesmente descartam o doador sem dar a menor explicação. Ora, doar sangue é uma atividade social, fazemos isto, geralmente, para ajudar alguém. Essa recusa na doação, sem o cuidado da justificativa, pode causar traumas na vida dessas pessoas. Infelizmente, são poucos que pensam nesses detalhes.

Existem muitas informações que somente eu tenho, pois consegui atuar em duas frentes, na sociedade civil e nas universidades. Minha função é decodificar essas informações numa linguagem acessível. Para isso, nossa associação precisa de um suporte financeiro. Não dá para fazermos isso apenas com as bolsas de pesquisa que temos recebido, que são, na verdade, individuais, e não institucionais. Precisamos de ajuda para sobreviver, somente assim poderemos passar essas valiosas informações para outras pessoas.

Às vezes digo que se eu morrer amanhã, mesmo com muita coisa já escrita, muito estará perdido. Tenho que formar discípulos, caso contrário restará apenas o olhar técnico dos médicos, e não pode ser apenas assim, é preciso enxergar o problema da anemia falciforme nos negros em seus vários ângulos.

Berenice Kikuchi participa da solenidade de implantação do programa de Anemia Falciforme na cidade de Piracicaba-SP.
Alexandre Mello, diretor de projetos da Fundação Palmares, ao lado de Berenice e suas auxiliares da Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo.
Em Piracicaba, no Clube 13 de Maio, com Silas, Edna Roland, Simone e Deise Benedito
Berenice Kikuchi