Maura Rosa de Paula Paz, mestre em psicologia social pela PUC-SP e fotos da matéria
Oriel Rodrigues de Moraes, quilombola de Ivaporunduva e graduado em direito pela PUC-PR
Comunidade Ivaporunduva, no detalhe Rio Ribeira de Iguape.
Reunidas na confortável pousada da imponente comunidade de Ivaporunduva, localizada cerca de 10 quilômetros da belíssima Caverna do Diabo, lideranças quilombolas celebraram o 20 de novembro e o legado do herói Zumbi.
O já tradicional evento, organizado pelo 21º ano pela Equipe de Articulação e Apoio às Comunidades Negras – EAACONE, inovou este ano ao contar com a participação das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira do Estado do Paraná.
Irmãs na Luta
Isoladas do restante do estado pela localização difícil entre rios, parques, áreas de preservação ambiental e sem estradas, as comunidades quilombolas dessa região do Paraná formam, juntamente com as comunidades quilombolas do extremo sul do estado de São Paulo um grande território negro nesta porção do Vale do Ribeira. Estas comunidades paranaenses só têm acesso a serviços públicos no município da Barra do Turvo, em São Paulo, formado quase totalmente por áreas de preservação ambiental e parques.
A região que concentra a maior porção continua de Mata Atlântica do país e foi reconhecida como Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO, em 1999, deve sua exuberante e preservada natureza à maciça presença quilombola e seu modo de vida. Projetos de turismo rural de base comunitária e da bananicultura orgânica desenvolvidos pelas comunidades permitem associar preservação ambiental e geração de renda, em região que registra baixos índices de desenvolvimento e muita carência.
Nos municípios de Eldorado, Iporanga e Barra do Turvo, respectivamente, está concentrado o maior número de comunidades paulistas. O Estado de São Paulo registra ainda comunidades em Registro, Iguape, Cananeia, Barra do Chapéu, Jacupiranga, Miracatu, Itaóca e Iguape no Vale do Ribeira; Ubatuba, Guaratinguetá e São Bento do Sapucaí no Vale do Paraíba; Salto de Pirapora, Votorantim, Pilar do Sul e
São Roque na região de Sorocaba e Agudos na região de Bauru. Em diferentes estágios do processo de reconhecimento e titulação, dentre as 33 comunidades já reconhecidas oficialmente, ou seja, com relatório técnico concluído e publicado, apenas 6 são tituladas e dessas só uma, Ivaporunduva, tem titulação definitiva registrada em cartório. O número de comunidades paulistas pode ser muito maior.
Longo e árduo processo de reconhecimento
Detalhe de casas de pau-a-pique em comunidade quilombola.
As comunidades reconhecidas, ou, em processo de reconhecimento hoje são uma pequena mostra do número de comunidades que povoaram o país e influenciaram no processo abolicionário. Estima-se a existência de pelo menos 5 mil comunidades em todo o pais, muitas que ainda não estão em processo de reconhecimento por motivos diversos. As várias fases do processo de titulação quilombola diferem no âmbito federal e estadual, quanto à metodologia. Há apenas 7 estados com legislação própria para o reconhecimento de quilombos. Nos demais a responsabilidade é totalmente federal.
Duas medidas ameaçam as comunidades, atualmente. Uma emenda constitucional, a PEC 215, quer retirar do executivo e transferir para o legislativo a prerrogativa de reconhecer terras indígenas e quilombolas. A outra é uma ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto 4887/03 que regulamentou o processo de titulação quilombola em âmbito federal. Ambas medidas representam um retrocesso na luta das comunidades.
Entre os cem anos que separaram o fim da escravidão até a adoção da primeira medida reparatória incluída na Constituição Federal de 1988 por meio do Artigo 68 das ADCT’s (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), muitas comunidades perderam suas terras quer por conflitos com grandes empreendimentos, ou, latifundiários, ou, pela especulação imobiliária, dentre outros motivos, Há casos atuais gritantes, como o da comunidade Os Camargos, entre os municípios de Votorantim e Salto de Pirapora, em grave situação de empobrecimento, da comunidade Dos Porcinos, em Agudos, que foi expulsa da terra pela ação de grileiros e das comunidades Fazendinha Pilar e Fazendinha dos Pretos, casos em que a ocupação do território é tão grave que se estende por quase todo o território do município.
Além de megaprojetos, como a construção de barragens no Rio Ribeira de Iguape e a ação de mineradoras, as lideranças quilombolas vivem sob tensão constante devido a conflitos com ocupantes não quilombolas que utilizam métodos, como invasões e ameaças de morte.
Em agosto de 2013, houve violenta agressão à liderança de uma das mais belas, porém, isolada comunidade do estado, com território, totalmente, inserido em área de proteção ambiental, repleto de cavernas, rios e habitat de espécies raras. O episódio assombra as lideranças que temem o mesmo desfecho do caso Laurindo Gomes. Liderança quilombola e agente comunitário de uma comunidade, também, muito isolada, que fora assassinado, em fevereiro de 2011, em meio ao processo de regularização de sua comunidade ainda não concluído. O isolamento das comunidades pela falta de estradas, telefone e energia aumenta a sensação de vulnerabilidade.
Passado heroico e oportunidades futuras
As comunidades locais testemunharam importantes fatos históricos. Há comunidades, como Ivaporunduva, que conta com 400 anos de história e foi contemporânea ao Quilombo de Palmares. A comunidade preserva sítios históricos onde os escravos trabalharam no primeiro ciclo do ouro do país. Algumas das comunidades locais formaram-se, além do processo de fuga e revolta, também, a partir do abandono dos escravos pelos exploradores que saíram da região, em busca de maiores lucros, após a descoberta das minas de ouro de Minas Gerais.
Outras comunidades formaram-se a partir da fuga de escravos que refugiaram-se para escaparem do recrutamento forçado para lutarem na Guerra do Paraguai, escondendo-se em locais, como a Caverna do Diabo.
As comunidades também relatam muitos conflitos com os latifundiários na tentativa de capturar e escravizar os quilombolas. A produção agrícola que abastecia e garantia a concentração do poder econômico nas comunidades quilombolas, dando origem às muitas cidades da região, com o tempo mudou de mãos. Oficialmente, a origem das cidades é creditada aos latifundiários e bandeirantes enaltecidos nos hinos cantados nas escolas locais.
O histórico de algumas comunidades, também, faz referências aos conflitos da Revolução de 32 e outras sobre a passagem do Capitão Lamarca pela região. Lamarca e seu grupo chegaram a ficar refugiados na hoje tombada Igreja do Rosário dos Homens Pretos de Ivaporunduva. Contraditoriamente, com a presença dos revolucionários na região o governo viu-se obrigado a investir na modernização da infraestrutura local por meio da abertura de estradas, após a frustrada tentativa de captura-los.
As comunidades guardam riquezas históricas, ambientais e culturais e vivem o desafio de garantirem a manutenção dos direitos conquistados e de impedirem que seus bens não lhes sejam retirados por interesses escusos e pelo racismo histórico que as acompanham.
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