A mãe acorda muito cedo, o filho é grande e pesado, mas age como um bebê, não se mantém em pé com segurança, a mãe tem que banhar, vestir, escovar os dentes, arrumar o material da escola. Dar o café da manhã, a medicação. A mãe também tem que cuidar de si mesma antes de levar o filho à escola. A mãe tem outra filha pra deixar logo depois. Andar a pé com o menino não é fácil, a mãe tem que sustentar o seu corpo cansado e o corpo do menino que cambaleia. O corpo é magro e frágil, não tem equilíbrio. Andam cerca de 1000 metros. Chegam na porta da escola. A mãe coloca o menino na ponta da fila, ele tem várias deficiências, não fica em fila alguma. Tem prioridade. De repente, o garoto esbarra no tripé onde está o aparelho medidor da temperatura em tempos de pandemia, cai. Seus olhos cor de jabuticaba olham para o céu. Está assustado. É negro, um corpo negro no chão, usa máscara branca, baba muito por baixo da máscara, a camisa também está molhada, a boca não fecha, são sintomas neurológicos. A mãe também queria cair no chão de tão cansada, mas tem que levantar o menino, percebe que as forças falham mas busca dentro de si os seus acordos de cabeça. Olha ao redor, percebe que os pais de outras crianças estão tirando fotos, celulares em punho. A mãe não consegue nenhuma ajuda para levantar o menino. Os pais colocam nas redes sociais não sei lá o quê sobre um menino que tem autismo caído na porta da escola. Talvez usem isso para provar que a inclusão nas escolas é um erro. Como assim o corpo de um negro no portão escolar? É uma ameaça, assusta as outras crianças. Um pai pergunta se o menino usa drogas. A mãe nem responde, só tem forças para levantar o filho e a si mesma. O menino entra, volta subitamente e grita: mãe eu te amo, vou sentir saudades. Os dois em um único abraço. A mãe volta pra casa a pé, andando trôpega, exausta, chora, o menino não verá o seu choro, a mãe está só. As mães não podem reclamar, são sacos de pancada, todo mundo quer bater. Não existe aldeia alguma, sua criança está desprotegida nesse mundo. O filho não sai da sua cabeça. A mãe precisa andar rápido. Tem outra filha para deixar na instituição de ensino. As mães negras vivem uma violência inimaginável.
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Cristiane Sobral
Carioca e vive em Brasília. Multiartista, é escritora, poeta, atriz e professora de teatro. Bacharel em Interpretação e Mestre em Artes (UnB). Licenciada em Teatro. É professora de Teatro da Secretaria de Educação do DF. Integra o Sindicato dos Escritores do DF. Publicou em diversas antologias nacionais e internacionais.
Tem 10 livros publicados, o mais recente: “Amar antes que amanheça”. Dirigiu o grupo de teatro Cabeça Feita por 17 anos. Em 2019, palestrou sobre literatura negra em nove universidades estadunidenses, inclusive Harvard. Nesse mesmo ano, foi jurada do Prêmio Jabuti, categoria de contos.
Publicou as peças: “Uma Boneca no Lixo e Esperando Zumbi”, espetáculo em que atua e dirige, peça que conquistou o 1º lugar no FFF (Festival Frente Feminina) do DF. “Esperando Zumbi” também foi convidado do Festival de Arte e Poesia de Moçambique, em Maputo, em 2019.
Em 2020, criou o selo editorial Aldeia de Palavras e o projeto Curso de Escrita Criativa, com mais de 800 alunos formados e 3 publicações: uma antologia de contos – “Águas D’Ilê” – e duas de poesia: “Ilha de Palavras”, com poetas de São Tomé e Príncipe, com poemas em português e criolo, e “Conexões Afro-Mulheristas”, livro de poesia de Vitória Régia Izaú.
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Essa negra escritora preta faz parte da antologia PRETOS EM CONTOS – Volume 2.
Coletânea preta de contos curtos que reúne narrativas de escritoras negras e escritores pretos brasileiros com diversas matizes literárias, com vários olhares e com heterogêneas escritas.
Será publicado pela Editora Aldeia de Palavras
Lançamento online em 17/12/2021 no Canal do Youtube: NOTAS DE ESCURECIMENTO – www.youtube.com/pliniocamillo
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