CRÍTICA TEATRAL
ESPETÁCULO: “ENTREGA PARA JEZEBEL”
Uma sala multiuso com alguns poucos itens de cena : esse é o ambiente com o qual nos deparamos quando vamos assistir ao espetaculo “Entrega para Jezebel” no Teatro Arthur Azevedo.
A montagem que faz parte da ocupação do “Teatro do indivíduo” tem origem no texto cuja dramaturgia de Roberto Muniz Dias é um dos maiores destaques. Somente um deles.
O texto fala com naturalidade de uma realidade distante de muitos; realidade essa que sensibiliza qualquer um que seja não necessariamente transexual, pois os conflitos da personagem principal (interpretada pela atriz Valeria Barcellos) remete a passagens tortuosas da vida de quem é negro, trans, homossexual, travesti, ou simplesmente quem se atreve a ter sequer uma pequena parcela de humanidade ou não fazer parte da massa da sociedade comum ou aceitável.
O elenco composto por atrizes trans ( Valeria Barcellos, Clodd Dias e Bibi Santos – Hugo Nacari na técnica ) e também pelo ator Daniel Sapiência efetuam seu trabalho com uma propriedade que não teria como ser mais marcante. Alguns dirão: “ah, as atrizes interpretam a elas mesmas”… E qual o desmérito nisso quando o foco de discussão são os sofrimentos e desafios dos excluídos? Um ator que não fosse trans poderia interpretar um deles?Talvez sim, pois atores são “feitos” para interpretarem principalmente aquilo que não são , mas a questão aqui é muito mais profunda nesse momento em que vivemos. A necessidade (por infinitos motivos) é de se falar pela boca do excluído e não pelo ponto de vista do opressor. A cia teatral merece palmas por dar espaço , trabalho e dignidade aos artistas negros/trans e também por expor seus dilemas através de um trabalho tão verossímil. Reconhecemos em cada passagem da ótima dramaturgia momentos de histórias que se não já vivemos, já escutamos contar. Os amores vendidos, a exclusão sempre presente, a ironia como a única saída para o drama da sobrevivência.
A direção de Rodolfo Lima desenha quadro a quadro com qualidade a jornada pela qual passa a personagem principal, como se fosse histórias em quadrinhos ou um ballet com passos marcados, marcações precisas mesmo quando singelas. Valeria Barcellos é uma bailarina que domina os movimentos de cena e manipula os sentimentos do espectador para onde deseja, seja em momentos dramáticos, irônicos, raivosos ou sensíveis.
Clodd Dias esbanja naturalismo e delicadeza na atuação , Daniel Sapiência mergulha numa deliciosa interpretação do cafajeste que representa muitos e Bibi Santos exala o odor da ingenuidade dos que estão entrando ainda com leveza num mundo opressor. Todos completam a pintura de personagens que nos trás realidade aos olhos e nos faz lembrar que essa vida num submundo obscuro e invisível existe, mesmo que a sociedade tente-nos convencer do contrário .
O teatro e a arte existem para retirar o véu que embaça a visão sobre a realidade e essa revelação é a obrigação dos que enxergam através dele.
A representatividade tão presente no palco por artistas alertas à causa desaparece quando observamos a plateia presente composta por casais brancos aparentemente representantes de uma sociedade pasteurizada. Precisamos como cidadãos acordarmos para o apoio à causa, a arte, aos excluídos. O papel que a arte faz falta agora a população fazer.
O título: “teatro do indivíduo” traduz bem a intenção é a execução desse trabalho. Que surjam mais espetáculos e artistas que nos façam nos lembrar que somos todos , por mais diferentes que pareçam…indivíduos.
Avaliação:⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️Excelente
Local: Teatro Arthur Azevedo – Mooca
Elenco/Direção: Texto: Roberto Muniz Dias. Direção: Rodolfo Lima. Elenco: Bibi Santos, Clodd Dias, Daniel Sapiência e Valéria Barcellos .
Data: até 28 de Abril; Sextas e Sábados, às 21h, e Domingos, às 19h.
Preço: R$ 10,00
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