Vamos refletir sobre o concurso de misses
“Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém,
como as tendas de
Quedar, como as cortinas de Salomão.
Não olheis por ser eu negra foi o sol que me queimou”.
(Cânticos dos Cânticos de Salmão ou os cantares)
Nesse domingo dia 26 de novembro parei para assistir a transmissão ao vivo pela TNT da miss universo. Na minha infância e adolescência tudo isso parecia muito distante de nós mulheres negras, pois em nossas histórias não éramos rainhas da primavera, as noivinhas das quadrilhas, e, nas regiões do norte e nordeste no famoso São João as rainhas do milho não são, ainda, as negras. Em Salvador relatou-me uma amiga que na sua infância ao pedir à professora que desejava concorrer ao concurso de rainha do milho a professora lhe disse:
– Você? Só se for a rainha da mandioca.
Esta situação se repete em outros cenários com outros profissionais que compartilham da idéia que as crianças negras, principalmente, as meninas negras são esteticamente inferiores:
No ano de 1983, organizamos uma festa de confraternização com as mães da comunidade, e elas planejaram apresentar uma peça teatral com as crianças. Uma das mães era negra e queria que a sua filha fizesse o papel de “branca de neve”. Isso causou espanto diante das outras, que demonstraram claramente que não desejavam que a criança negra fizesse o papel. Foi uma situação desagradável; a gente fica sem saber o que fazer. Conversamos muito até que ela aceitou que a menina fizesse o papel de formiguinha. A menina ficou bonitinha, colocamos as anteninhas de formiguinha nela, ela ficou engraçadinha. (*)
Esse depoimento retrata com precisão uma das facetas das discriminações étnico-raciais no Brasil, a qual imputa ao sujeito a responsabilidade pelo racismo e, ao mesmo tempo, lhe informam que o lugar por ele desejado não é o seu: branca de neve, não. Para negros, temos o papel de formiguinha. O embaraço da assistente social diante da situação revela o desconhecimento e não o preparo para trabalhar com a questão, mas demarca também o papel desse tipo de profissional nas intermediações entre instituição e usuários, e, nesse caso específico, a assistente social se fez interlocutora das pessoas brancas pertencentes ao grupo comunitário e reproduziu a proposta de uma “democracia racial”, que coloca o negro em segundo plano, o que pôde ser observado no fato de a mãe e a criança negras serem levadas a aceitar o papel de formiguinha como consolo.
Foi na minha infância, após um processo de votação para escolher a rainha da primavera, que uma amiguinha branca que gostava muito de mim me dissera, no caminho de volta para casa, que me achava – verdadeiramente – linda, mas que não havia votado em mim porque eu era negra. Ela repetia com um sorriso sincero:
– Você é tão bonitinha.
Sinceramente, fiquei encantada com a espontaneidade dessa doce amiga, e ao escrever esse texto veio em minha mente a cor do vestido, o qual ela levava no corpo: era vermelho com estampas florais. Um imenso carinho tomou conta do meu coração. Essa querida amiguinha aprendeu que as pessoas negras não são suficientemente boas e bonitas. Dessa forma, o preconceito aprendido foi mais forte do que o carinho e a amizade que ela pudesse nutrir por mim. Engraçado, foge da memória em quem votei? Com certeza, não votei em mim mesma. Penso que não me acreditava uma criança apta para competir com as demais crianças brancas. Mas aqui à guisa de humor: o bom é que ninguém teve a ousadia de fazer, à época, um concurso para eleger a rainha da primavera nas escolas de ensino fundamental, somente para crianças negras.
Todavia, após tanto tempo, tive a impressão neste último domingo de rever aquela doce amiguinha através da fala de Natalia Guimarães a miss Brasil que quase se tornará Miss Universo em 2007; que fora designada para fazer o comentário do concurso, do presente ano, transmitido pela TV-TNT. Natalia Guimarães admirada, referiu-se várias vezes, ao aumento de mulheres negras, nos últimos tempos, nesses concursos. Nos seus comentários tiveram certa recorrência a palavra EXÓTICA. As mulheres negras no seu entendimento têm uma beleza EXÓTICA.
Natalia Guimarães, simplesmente, como a minha amiguinha aprendeu assim: esses concursos são para as brancas, não para os exóticos, isto é, nas várias acepções da palavra exótica encontramos: “que vem de fora, estranho, forasteiro, peregrino: plantas adventícias. Esquisito; que não é comum; que expressa extravagância ou excentricidade: animal exótico”.
Os negros também, ao emprestarem as lentes do opressor, também, se veem como fora dos lugares difundidos como lugar de branco. Tanto é, que cresci achando ‘esquisito’ os bailes para eleger a beleza negra de forma segregada. Esses bailes se constituíram em verdadeiros corroboradores do racismo estético e promotores da BELEZA EXÓTICA. Lembro de minhas irmãs arrumando-se para irem ao baile no Clube Oito de Setembro na cidade de Amparo, um clube que como outros existentes na cidade, normalmente não entravam negros. Nesse clube vi minha linda prima Luiza Helena Paulino sendo avaliada por brancos segregacionistas racistas, mas, cristãos que em certa medida dormiam com as negras, pois no imaginário social, ainda, temos como verdade a celebre frase atribuída ao Guerreiro Ramos, conhecido como boca do inferno:
Branca é para casar,
Mulata é para fornicar
E preta para trabalhar
Bem, mesmo nos clubes de menor status como o Floresta Atlético Clube, muitas vezes, nas noites de gala as negras mesmo com seus ingressos nas mãos eram constrangidas como se não fossem adequadas para compartilharem o mesmo ambiente com as moças brancas feitas para casar. Penso que o único clube que os negros circulavam com mais frequência e sem tantos constrangimentos era o Amparo Atlético Clube.
Assim, foi muito comum a população negra promover os bailes e concursos segregados. De outra forma, como se agregar para o lazer? Os mais famosos aglutinadores foram: Bonequinha do café, Perola Negra entre outros eventos; como o baile menina moça, em razão das meninas negras não se debutarem juntamente com as brancas. (foto acima – Jair rodrigues participa do Baile do Concurso Miss Simpatia) – (Baile Menina Moça – foto ao lado primeiro baile das debutantes negras, com a presença de Ruth de Souza)
Na verdade, a cultura brasileira institui que o padrão de beleza é europeu. Assim, para o branco, a mulher negra estaria esteticamente impossibilitada de concorrer com a mulher branca num mesmo concurso de beleza. Essa exclusão é universal, pois os concursos para eleger as belezas municipais, estaduais e nacionais é uma prática realizada em quase todos os países do mundo, e a presença negra parece ser quase inexistente, exceto os países africanos, e, ainda assim fazendo uma exceção para África Sul.
Desse modo, dos concursos de Miss Universo quase todos os países do mundo participam, e em toda a sua história apenas quatro mulheres negras foram eleitas. A primeira em 1977, Janelle Penny Commissiong, cidadã negra de Trinidad Tobago. A segunda, Wendy Fitzwilliam, em 1998, também de Trinidad Tobago. A terceira em 1999, Mpule Kwelagobe, vinda de Botswana. A quarta foi a angolana Leila Lopes, em 2011.
Janelle Penny foi tão importante para mim naquele 16 de julho de 1977, era um sábado e, lembro-me se pudesse não sairia da frente da televisão para seguir com minha família em uma excursão para a Aparecida do Norte. Queria ver o final do concurso me encantei por ela, hoje eu sei, foi mais que isso: me encantei e celebrei a nossa história comum. A excursão atrasou e eu a vi vencer. Eu venci junto aos 14 anos, foi como se todas as mulheres negras tivessem colocado a coroa. Comprei a revista Manchete e acredito que devo ter o recorte até os dias de hoje com a notícia da nossa beleza.
Janelle Penny (foto ao lado) foi tão importante para mim naquele 16 de julho de 1977, era um sábado e, lembro-me se pudesse não sairia da frente da televisão para seguir com minha família em uma excursão para a Aparecida do Norte. Queria ver o final do concurso me encantei por ela, hoje eu sei, foi mais que isso: me encantei e celebrei a nossa história comum. A excursão atrasou e eu a vi vencer. Eu venci junto aos 14 anos, foi como se todas as mulheres negras tivessem colocado a coroa. Comprei a revista Manchete e acredito que devo ter o recorte até os dias de hoje com a notícia da nossa beleza.
No âmbito brasileiro, os concursos também têm contemplado, raramente, a participação e o coroamento de mulheres negras. Na história do concurso de Miss brasileiro é possível localizar Deise Nunes em 1984, como a primeira Miss Brasil.
Em 2016 temos Raissa Santana (foto ao lado)representando o Estado do Paraná, e repetindo a dose negra em 2017 temos Monalysa Alcântara (foto abaixo) representando o Estado do Piauí. Os tempos estão mudando em 2016 vimos muitas candidatas negras na miss Brasil.
Todavia, é importante destacar nesse contexto a experiência de Vera Lúcia Couto dos Santos, Miss estado da Guanabara em 1964, e ex-vice Miss Brasil do mesmo ano. Seu relato corrobora o racismo estético ainda existente na sociedade brasileira e o sentimento de horror sentido pelo branco ao ver o negro ultrapassar o status por ele determinado como hegemônico e intransponível.
Era um encargo muito grande que, até então, não tinha sido dado a ninguém da minha cor. No dia do concurso, eu estava fazendo a última prova do vestido no ateliê do Hugo Rocha, quando recebi um telefonema de uma pessoa, voz feminina, que me disse: – Olha, eu estou ligando pra você porque lhe aprecio muito e quero lhe dar um conselho de amiga. Acho que você deveria desistir do concurso porque existe um grupo de senhoras da sociedade que compraram mesas especialmente pra vaiar você.
Não se identificou… Era parte, sem dúvida, de uma guerra de nervos, não sei se de alguma admiradora, de outra concorrente, ou de alguém inconformada por eu ser negra, a representante do Estado da Guanabara.
Correu também o boato de que a Comissão Organizadora teria retirado o nome de Everton Castro Lima do júri, porque ele tinha se manifestado a meu favor publicamente; assim com disseram que colocaram o jornalista Pomona Politis, porque ele declaradamente não gostava de preto. Essas notícias chegavam a mim e era como se um ciclone tivesse me pegado, eu perdia o chão, ficava completamente baratinada, sabendo que tinha que manter a calma, mas sem saber como…
O que eu sei mesmo é que, no meio daquele tumulto infernal, onde o sorriso tinha que ser mantido a todo custo, eu ouvi claro e cristalino: – Sai daí crioula! Teu lugar é na cozinha. Não se manca, não?
Era uma mulher na ponta da passarela, que tinha a forma de uma ferradura, gritando histérica, inteiramente possessa. E ia por entre as mesas, repetindo, praticamente sem parar, a mesma coisa. As senhoras nas mesas que o telefonema anunciou não estavam lá, mas aquela mulher valia por quase todo o Maracanãzinho (COSTA, 1982, p. 26-31).
Vera perdeu pontos, pois não conseguiu se concentrar e deixou de fazer o trajeto por inteiro na passarela. Representou o Brasil no concurso de Miss Mundo, ficando em terceiro lugar.
Assim, até que ponto a promoção de bailes para a eleição da beleza negra, organizados pelos grupos negros, corroborava para que a ideia da inferioridade estética da população negra não se difundisse? Fica no ar. Não tenho respostas.
Para finalizar retomo aqui a epigrafe trocando mas pelo e: “Eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão. Não olheis por ser eu negra foi o sol que me queimou. ” Este é um texto bíblico a Sulamita por quem o Rei Salomão se enamora era negra. Não vou me debruçar aqui em interpretações teológicas.
O importante é firmar e reafirmar o fascínio e o privilegio da brancura. As moças com pele mais clara não trabalhariam ao sol. Todavia, o texto aponta para uma hierarquia de classe e raça. A Sulamita como as moças pobres e negras na contemporaneidade, ainda, se justificam e pedem licenças para ser e estar.
Todavia, – Yityish Aynaw (Miss Israel/2013) – enquanto encarnação ou não da Sulamita ou mesmo da Rainha de Sabá – por quem também Salomão se enamora – resgata a coroa e a presença negadas a Rainha de Sabá no solo de Israel depois de quase 5000 anos de história. Como descendente de Salomão pela linhagem Menelik, Yitish, uma falasha que imigrou da Etiópia, não pede licença e reafirma sua negrura, falando de sua paixão por Martin Luther King: sic ele lutou pela igualdade e por isso estou aqui”.
Ela tratou sua vitória como um ato político pedindo ao concurso de Miss Israel que expressasse a diversidade da sociedade israelense: “para mim é uma missão representar as diferentes cores que convivem em Israel”. Afirmando ainda, que espera que sua vitória faça com que existam mais modelos negras no país.
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